Literatura

Uma linguagem corrosiva

15 dezembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

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O breve e burlesco livro Centúria – Cem pequenos romances-rio, do italiano neovanguardista Giorgio Manganelli (Milão, 1922 – Roma, 1990), apresenta, de forma virtuosística, algumas variações sobre o tema da ironia, que, ao autor, foi característica inerente a todo seu trabalho.

A prosa de Manganelli é marcada pela transgressão de fronteiras entre o real, o fictício e o imaginário. As modulações de seu texto passam pelo humor, abarcam o sarcasmo, desdobram o grotesco; movimento que confirma sua habilidade em potencializar a tradição da comicidade e da ironia que, na literatura italiana, vem de Boccaccio e alcança o século XX com Carlo Emilio Gadda, sem dúvida seu mestre e precursor.

Manganelli foi um dos mais inovadores escritores italianos do século XX, autor de uma numerosa obra, complexa e elaborada. No Brasil, Centúria foi publicado em 1996, pela editora Iluminuras, com tradução de Roberta Barni. O livro foi vencedor do Prêmio Viareggio em 1979.

Conforme sintetiza Manoel da Costa Pinto, em artigo escrito para o extinto e excelente caderno Mais!, do jornal Folha de São Paulo, o livro “tem como horizonte de criação as obras em prosa que fundam a literatura italiana no fim da Idade Média, substituindo o latim escolástico pelo latim vulgar”. Diz Costa Pinto: “Como nota a tradutora Roberta Barni no posfácio do livro, pode-se identificar em Centúria o modelo de Il Novellino – uma coletânea de cem narrativas anônimas, escritas em Florença no final do século 13. Os paralelos são eloquentes. O Novellino é uma sequência de crônicas que têm como leitor implícito uma burguesia nascente, que se aproxima do universo da nobreza por meio do imaginário galante de enredos cavalheirescos e histórias exemplares, de uma ‘cantilena hipnótica’ que contempla o passado perdido – segundo a definição do próprio Manganelli num ensaio sobre a obra. Os breves relatos de Centúria são, numa analogia às avessas, uma evocação das pequenas aventuras de personagens envolvidas em obsessões cotidianas, exasperadas por idéias que almejam a grandeza, mas cujo lento ruminar impede que essas idéias se corporifiquem em atos.

“São assim a história do homem que ‘havia descoberto a prova irrefutável da existência de Deus e que vai progressivamente esquecendo os termos essenciais de sua equação’ (capítulo 4); ou do casal que se apaixonara a partir de uma infelicidade comum e cujo amor só podia existir na perpetuação dessa dor, levando-os à ‘meticulosa, lenta destruição recíproca’ (capítulo 89). Manganelli parece descobrir, na estrutura fixa do Novellino, uma fórmula para escandir não mais o universo heróico de indivíduos que se espelham nas sagas dos semideuses, mas um mundo em que até os acontecimentos mais decisivos da história  golpes de estado, revoluções, cataclismas  são reduzidos à insignificância de personagens crepusculares, melancólicas”.

Para o crítico, ainda no mesmo artigo, “em contraste com o estilo caleidoscópico, cristalino e muitas vezes cerebral de Calvino ou Borges, porém, Manganelli funda sua tradição no gosto pelo paradoxal e pelo ‘nonsense’ – que ele identificara em autores como Poe e Carroll durante seus cursos como professor de literatura de língua inglesa na Universidade de Roma”.

De acordo com Claudemir Francisco Alves, professor doutor da PUC Minas, no artigo “A ficcionalização da realidade e a realização do fictício na antinarrativa de Giorgio Manganelli”, apresentado em 2008 no congresso ABRALIC, a “peculiaridade da obra de Manganelli se deve ao uso de estratégias de construção textual pelas quais a narrativa é meticulosamente eludida e seu lugar ocupado por dispersões narrativas. Com o conceito de dispersão narrativa, designamos concisamente os diversos gêneros manganellianos caracterizados por uma sintaxe em que predominam as aposições de imagens ao invés da reflexão hipotaticamente ordenada. A marcada presença da metalinguagem – e de inúmeras outras estratégias que mais ocultam do que revelam seu objeto – faz desses livros um discurso sobre a impossibilidade da narrativa. É postulada como igualmente impossível qualquer realidade que se pretenda paradigmática e independente dos jogos lingüísticos que a constituem. Negando a precedência das coisas sobre as palavras, faz-se uma clara opção pelo fronteiriço, pelo estado intermediário, por aquilo que não tem estatuto pragmático de verdade ou de realidade. A idiossincrasia da metafísica manganelliana se deve ao fato de não fundar-se sobre o ato de ser, mas sobre os possíveis do ser”.

A psicanalista e ensaísta Miriam Chnaiderman, inicia seu artigo “Cintilações múltiplas: fendas para mundos possíveis”, cujo intuito é analisar como o trabalho com o real expressivo do mundo afetivo ganha forma, utilizando o evento estético como paradigma para o questionamento do tempo cronológico, citando o conto “dois” [ver abaixo, na seção “trecho”], que, diz ela, “– belíssimo –, leva a pensar na mistura entre um real do corpo e a fantasia, entre a imagem e o encontro. Ao falar da toxidez que uma paixão produz no real, equaciona lirismo e vômito. Anula-se aí a diferença entre imagem e coisa”.

O texto fantástico de Manganelli desdobra em inúmeras possibilidades analíticas e, ao fim, repercute algo similar ao que disse o filósofo Gaston Bachelard em seu A poética do espaço, e constrói-se como “impulsos linguísticos que saem da linha comum da linguagem pragmática” e que “são miniaturas do impulso vital”.

 

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Trecho:

 

Dois

Um cavalheiro de média cultura e hábitos decorosos encontrou, após uma ausência de meses, devida a eventos horrivelmente belicosos, a mulher que amava. Não a beijou; mas, apartando-se em silêncio, vomitou demoradamente. À mulher estupefata negou qualquer explicação sobre aquele vômito; nem a deu a ninguém; e somente com paciência ele chegou a compreender que aquele vômito expulsava de seu corpo todas as inúmeras imagens que da mulher amada nele havia se depositado intoxicando amorosamente seu corpo. Naquele instante porém, ele compreendeu como já não lhe seria mais possível tratar aquela mulher como se entre eles houvesse se passado somente amor, um amor macio, ansioso apenas por superar cada obstáculo e por tocar para sempre a epiderme do outro; ele havia experimentado a toxidade do amor, e tinha compreendido que a toxidade da distância nada mais era que alternativa à toxidade do íntimo, e que havia vomitado o passado para dar lugar ao vômito do futuro. Embora lhe fosse impossível explicá-lo a quem quer que fosse, ele sabia que justamente o vômito, e não os suspiros, era o sintoma de um amor necessário como a morte é o único sintoma certo da vida.

Desde então, ele encontra-se na situação deliciosamente atormentadora de não poder nem desdenhar, nem cortejar, nem acariciar, nem contemplar a mulher que, indubitavelmente ele ama, – ama, aliás, de um jeito insuportável, agora que a fez partilhar de seu vômito – nem confiar-lhe seu segredo, que ele, para aceitá-la totalmente, tem que absorvê-la, fazê-la própria até o momento em que ela se revelar como veneno, coisa que ignora ser, e que ele não deseja lhe explicar. Enquanto isso, em toda parte, a vida torna-se instável, novas guerras ameaçam. Os perspécticos mortos preparam-se, e a terra torna-se macia, à espera de valas. Em toda parte colam-se cartazes que explicam o sangue. Já que ninguém fala do vômito, o apaixonado acredita que o problema seja ou ignorado ou dado por ignorado ou demasiado notório. Beija a noiva, confia-lhe a noite nupcial, monta vomitando o poderoso cavalo da morte.

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centúria

 

CENTÚRIA CEM PEQUENOS ROMANCES-RIO 

Autor: Giorgio Manganelli
Editora: Iluminuras
Preço mínimo: R$ 10,00 (219 págs.)

[disponível apenas em sebos]

 

 

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* Para que se conheça um pouco mais do livro de Maganelli, colocamos aqui também um dos contos seguindo a tradução publicada em Portugal, feita por António José Pinto Ribeiro.

 

Oitenta e sete
Que aquele homem está incomodado, vê-se claramente. Está irrequieto; caminha, pára, apoia-se num só pé, parte de novo correndo; ei-lo parado numa esquina de rua; espreita para a rua seguinte, hesitante; suspira e apoia-se à parede. Na realidade, está extremamente insatisfeito com a sua vida, mas tem ideias bastante confusas quanto às origens de tal insatisfação. Podia ser, pensou, o uso do tempo. O tempo não tem regra, mas finge tê-la. Nada é mais difícil que tratar com o tempo. Em certos dias, os segundos escorrem como que libertos de uma clepsidra empregada como prisão; mas muitas vezes são de desigual grossura e, ao viver, tropeça neles continuamente. Pensa que ainda lhe restam anos para viver, e não sabe a sua duração. Maneja os botões mentais do tempo, e eis que ele pára totalmente; de uma hora à outra passam dez horas; os segundos são longos como uma rua, e a rua, como é sabido, é sempre feita de quartos de hora, mas quatro ruas não fazem uma hora, fazem seis dias. O sétimo é uma praça, e atravessando-a, engana-se. Procurou adestrar o futuro, e obrigá-lo a um ritmo menos cansativo. Comprou um grande relógio, para ensinar o tempo ao tempo, mas o tempo não se aprende a si mesmo. Se carrega num outro botão, o tempo corre, escapa-se, foge. As ruas encurtam-se, e se não trava logo, dentro de uma semana a sua vida estará acabada e nada terá feito para justificar o seu nascimento. Seria preciso inventar um relógio capaz de capturar o tempo e obrigá-lo a manter aquele passo, sempre, todos os dias, toda a vida. Mas ele seria o primeiro a escaqueirar um tal relógio. Por conseguinte, não pode deixar de procurar ajustamentos provisórios e inseguros, já que o tempo não respeita os acordos, não porque seja desleal, mas porque é por sua vez vítima do tempo. Na realidade, como o senhor descontente suspeita desde há algum tempo, também o tempo está descontente consigo, mas
não consegue resolver o seu próprio mal-estar, porque não tem nenhum modo para medir-se, a não ser ele próprio; o resultado é inutilmente injusto, como é natural, e o tempo nunca sabe se está a correr, a contemporizar, ou se está parado. Por isso, o tempo pede continuamente desculpa a todos, sem querer saber se é razoável que peça desculpa.

 

 

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