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Aos espíritos livres

1 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

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Mais que uma coletânea panorâmica do pensamento de Friedrich Nietzsche, este volume abarca uma compreensão da obra do filósofo. Os textos, selecionados por Gérard Lebrun, saudoso professor do Departamento de Filosofia da USP, respondem a duas questões: por que e como ler Nietzsche. Há, afinal, uma maneira “lebruniana” de trabalhar a filosofia de Nietzsche, como bem analisou o professor Ivo da Silva Júnior em artigo publicado nos Cadernos Nietzsche: para Lebrun, “não se tratava de pensar a partir de Nietzsche ou com ele as questões da contemporaneidade. Tratava-se de avaliar os tempos atuais por meio da História da filosofia. Nada mais indicado então que a filosofia de Nietzsche para fornecer os “instrumentos” para esse trabalho avaliativo”. Este volume das Obras incompletas, além da cuidadosa seleção de textos, conta com a precisa tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, prefácio e revisão técnica de Márcio Suzuki, além de posfácio de Antonio Candido. Um time de peso intelectual incomparável faz, desta edição, portanto, uma pequena joia editorial.

As Obras incompletas constavam no volume dedicado a Nietzsche da coleção “Os Pensadores” da Abril Cultural, com esta seleção de textos e tradução de Rubens Rodrigues, mas sem os textos de prefácio e posfácio. A revisão técnica do volume agora lançado pela Editora 34 ficou a cargo do professor Márcio Suzuki. O livro foi concebido de maneira a respeitar a particularidade da filosofia nietzscheana: não apresenta um corpo de doutrina, mas, em contrapartida, um método de interrogação da condição humana em tudo que lhe é ou parece ser essencial. Desse modo, bem e mal, verdade e mentira, mito e moral, vida e morte, história e tempo tornam-se matéria legítima para qualquer investigação, inclusive da própria filosofia – mantendo as perguntas em aberto, livres e incompletas.

Nietzsche desenvolveu sua filosofia à maniera de um Versuch (ensaio, tentativa, experimentação), não como um conjunto de teses articuladas de maneira fixa. Como definiu Blaise Benoit, professor associado à Universidade de Nantes, na França, o leitor de Nietzsche “é ele mesmo constrangido a abordar os textos deste pensador de maneira tateante: se num primeiro momento a leitura parece impossível de dominar, a segunda parte da contribuição lembra que uma leitura metódica pode ser considerada, leitura que não pode, todavia, pretender absorver totalmente as dificuldades colocadas pelo pensamento de Nietzsche. O Versuch nietzschiano conduz, por conseguinte, a construir um Versuch do leitor em um caminho que, de forma mais ampla, convida a considerar a obra de Nietzsche como problema (“als Problem”)”.

Em artigo publicado nos Cadernos de Filosofia Alemã (texto intitulado “A filosofia como arte, ou a “tópica indefinida” de Gérard Lebrun“), Márcio Suzuki analisa que Lebrun, “se toma o martelo das mãos de Nietzsche, ele sabe muito bem que o autor de Zaratustra não o empregava somente para demolir ídolos, o que faria dele apenas mais uma figura banal. Em Lebrun, o martelo serve para construir uma imagem em negativo, um contramodelo com valor heurístico”. E, como definiu Bento Prado Jr., a “obra de Lebrun, como historiador da filosofia, é toda ela animada por uma mesma interrogação, propriamente filosófica, sobre a ilusão como destino do pensamento”. Segundo Bento Prado, como sugere Pascal, na frase “La vraie philosophie se moque de la philosophie” (a verdadeira filosofia zomba da filosofia), “a antifilosofia não é externa à própria filosofia: mesmo porque só se pode verdadeiramente rir da filosofia, quando é através dela mesma que se ri. Pois a interrogação filosófica não é necessariamente a busca do Sentido Último das coisas, que poderia garantir nossa “segurança moral”. É outra a interrogação que atravessa a obra de autores tão diferentes, como Pascal, Hume, Kant, Hegel e Nietzsche – todos presentes no álbum de família de Lebrun –, que visa não o repouso final na posse de um Saber ou da descoberta de um Fundamento, mas, como diz Foucault, a tomada de consciência da “desorientação daquele que conhece”. É na empresa genealógica de Foucault ou na iniciativa “anarcôntica” de Hume que Lebrun encontra os modelos mais próximos de sua atividade histórico-filosófica”.

Fruto de longo convívio com a obra de Nietzsche, Lebrun lançou em 1988 o livro O avesso da dialética: Hegel à luz de Nietzsche, traduzido por Renato Janine Ribeiro e publicado pela Companhia das Letras, mas infelizmente esgotado.

 

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LIVRO IV

§ 339

Transmutação dos deveres – Quando o dever deixa de ser custoso, quando depois de longo exercício ele se tranforma em alegre inclinação e em necessidade, os direitos de outros, aos quais se referem nossos deveres, agora nossas inclinações, se tornam algo outro: ou seja, ocasiões de sensações agradáveis para nós. O outro, em virtude de seus direitos, torna-se então digno de amor (em vez de digno de honra ou temível como antes). Procuramos então o prazer, quando agora reconhecemos e entretemos o domínio de sua potência. Quando os quietistas não sentiam mais seu cristianismo como um fardo e em Deus só encontravam seu prazer, adotaram o lema “tudo pela honra de Deus!”: o que quer que ainda fizessem nesse sentido não era mais nenhum sacrifício; significava o mesmo que “tudo por nosso contentamento!”Desejar que o dever seja sempre algo custoso – como o faz Kant – significa desejar que ele nunca se torne hábito e costume: nesse desejo reside um pequeno resíduo de crueldade ascética.

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OBRAS INCOMPLETAS

Autor: Friedrich Nietzsche
Editora: 34
Preço: R$ 41,30 (432 págs.)

 

 

Nota:

A quem se interessar, a tradutora Denise Bottmann realizou um levantamento das traduções das obras de Nietzsche no Brasil.

Comparando-as, ela opina que a tradução feita por Rubens Rodrigues Tores Filho, publicada originalmente no ano de 1974, é não somente “aquela que apresenta maior consistência acadêmico-filosófica”, como marca “a data em que Nietzsche pensador finalmente ganhou seu visto de permanência no Brasil”.

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