Imbricada entre a Viagem ao centro da Terra de Júlio Verne e a Máquina do tempo de H. G. Wells, a ficção filosófica científica Fragmento de história futura, de Gabriel Tarde, propõe, a seu turno, uma visão dos séculos vindouros. A obra, publicada originalmente em 1896, é considerada uma fábula sociológica. Seu narrador vive num futuro distante, por volta do século XXXI, e conta a história de um mundo que não precisa de luz, nem de felicidade: mundo em que, extinto o sol por uma catástrofe, a humanidade decide habitar as entranhas da terra, distante de qualquer vestígio de natureza. Nossos supostos descendentes ‘trogloditas’ – não no sentido de neoprimitivos, mas como representantes de uma artificialização emancipatória da humanidade, responsável pelo florescimento de uma civilização refinada – deram início a uma utopia subterrânea, o nascimento de uma humanidade que pode tirar tudo de si mesma, para a qual a natureza ganha “o encanto profundo e íntimo de uma velha lenda, mas de uma lenda na qual acreditamos”.
O cenário atordoante que a imagem cria, serve para Tarde como desenvolvimento de um experimento ficcional para suas teorias sociológicas. Trata-se de um experimento intelectual para pensar a essência da sociedade humana, através da descrição de uma “humanidade inteiramente humana” resultante da “eliminação completa da Natureza viva, seja animal, seja vegetal, excetuado apenas o homem. Daí, por assim dizer, uma purificação da sociedade”.
O livro foi traduzido para o português por Fernando Scheibe e publicado pela editora Cultura e Barbárie. O volume conta com o prefácio que H. G. Wells escreveu para a edição inglesa de 1905. Nele, o escritor inglês pontua: “O Sr. Tarde confere a seu mundo o inesperado, mas ele vem não insidiosamente como uma diferença única em cada indivíduo e ponto em questão, e sim de fora. Justo quando a Humanidade, bela e encantadora, agrupou-se agradavelmente, racionalmente, com o maior bom gosto, para sempre, em seus estúdios, em seus salões, em suas pequenas mesas verdes, em suas tables d’hôte, em seus cabinets particuliers – o sol se apaga! […] Talvez a trama melhor sustentada nesse admiravelmente divertido tecido seja a completa satisfação do historiador imaginário com as novas condições de vida. A terra se transforma num interminável favo de mel, todas as outras formas de vida que não a humana são eliminadas, e nossa raça se converte numa comunidade que mantém um alto nível de felicidade e prazer através do constante recurso aos “tônicos sociais”. Meio zombando, meio aprovando, o Sr. Tarde indica aqui uma nova concepção do intercurso humano e critica, com um distanciamento ricamente sugestivo, as relações sociais de hoje em dia. […] Ele rejeita a asserção de que a ‘sociedade consiste na troca de serviços’ com a segurança de alguém que muito refletiu sobre isso. Ele enuncia claramente aquilo que muitos de nós estamos começando, vagamente talvez, a compreender: que a ‘sociedade consiste na troca de reflexos’”.
Segundo Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, no artigo “Fragmento sobre o Fragmento”, publicado na revista Sopro n° 97: “O ensaio de philosophy fiction escrito por Gabriel Tarde, Fragmento de história futura, é um dos exemplos mais curiosos, por sua verve irônica e sua real imaginação conceitual, do tema da perda do mundo. Ele tem a virtude de levar ao absurdo certo progressivismo tecnofílico e ao mesmo tempo de nos fazer refletir sobre nossa relação com a Terra”. Segundo os dois antropólogos, a chave do livro “está em suas páginas finais, que funcionam como uma espécie de “anti-cabana mágica” desta fantasia: o otimismo (levemente sinistro) do historiador desta civilização pós-apocalíptica que se interiorizou no mundo para melhor interiorizá-lo como técnica, e assim emancipar-se dele, cede o lugar a uma inquietação diante de um certo núcleo “irregular”, um irredutível impulso anti-social da humanidade. O contra-Éden tecno-troglodita não consegue emancipar-nos de todos os atavismos. A sociedade perfeita mas “exacerbada e forçada” do futuro possui seus “refratários” (p. 72), que se entediam com a homogeneidade monótona do ambiente artificial. Pior, ela se vê periodicamente ameaçada pelo irrupção do mais natural dos instintos, o cio primaveril […] que leva à explosão populacional e pressagia o colapso do paraíso subterrâneo e secreto de uma humanidade introvertida. Até mesmo o fim da História pode estar chegando ao fim”.
A editora disponibiliza um trecho para visualização.
Autor: Gabriel Tarde
Editora: Cultura e Barbárie
Preço: R$ 24,50 (76 págs.)