Literatura

Fragmentos de memórias

11 junho, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Outro autor presente na lista da promoção da Companhia das Letras é W. G. Sebald.

Um dos títulos do autor alemão com desconto é Os emigrantes – Quatro narrativas longas, livro que lhe rendeu renome internacional.

As quatro narrativas longas que compõem a obra, são centradas, cada uma, num personagem que em algum momento cruzou a vida do narrador. Todas as trajetórias reconstituídas foram em alguma medida transtornadas pela história contemporânea da Europa, em especial pela Segunda Guerra e pelo Holocausto. Simulando um trabalho de investigação biográfica de seus personagens, o narrador revela a contrapelo suas próprias andanças e desajuste com o mundo contemporâneo. Reforçam a sensação de estranheza e melancolia as imagens que, num procedimento característico, o autor espalha ao longo do texto. Uma obra de fôlego e originalidade exemplares, que relativiza e amalgama ficção, retalhos históricos, memórias, lembranças e documentos.

W. G. Sebald coleciona fragmentos do passado, que surgem, através de pessoas, objetos, paisagens, imagens, articulando história, memória e ficção, num sentido semelhante ao do historiador arqueólogo-colecionador que Walter Benjamin definiu, atitude necessária para ver o passado de maneira crítica. Melancólico, Sebald recolhe os fragmentos de memória para dar sentido ao presente, à tragédia da modernidade.

Micheliny Verunschk Pinto Machado, em artigo publicado na revista de literatura e linguística Eutomia resume: “É na confluência da memória como estilhaço da história que encontra-se o livro Os emigrantes […].Uma voz narrativa pungente, enlutada, não por acaso denominada W. G. Sebald, autor tornado personagem, testemunha privilegiada daquilo que narra, conduz as três primeiras histórias, relatos de judeus exilados no pós-guerra, marcados pelo sentimento de inadequação, pelo sofrimento, pelo luto de vidas que já foram perdidas ou desperdiçadas. Na última narrativa, as páginas do diário de uma mulher judia, nos anos em que se aprofunda a catástrofe da guerra, apresenta fatos corriqueiros de um mundo que o leitor/espectador sabe, já foi transformado inexoravelmente”. De acordo com Machado, “Perpassa a obra de W. G. Sebald um sentido lírico que se aprofunda sobretudo nas imagens e no ritmo que imprime na descrição de algumas cenas. Um lirismo arruinado, diga-se de passagem, melancólico, fruto de seus diálogos com autores como Robert Burton, Robert Walser e Gottfried Keller”. Através desse lirismo, em Os emigrantes Sebald, como analisa Machado, “convoca o olhar do leitor ao centro, não tãosomente da cena, não da paisagem ficcional exatamente, mas ao centro da memória do outro. E no centro do centro, a dor. A existência da dor, e a memória que persevera, é que coloca o ser-no-mundo, parece dizer o autor-narrador. É o que organiza e dá sentido àquilo que foi vivenciado e apagado do relato oficial. Com a escritura cruzada de Sebald, ficção, narrativa e memória compõem um texto significativo, ampliado por fatos que se inscrevem no e para além do cotidiano”.

De acordo com a análise de Gerciano Maciel Pereira, em artigo pulicado nos Cadernos Benjaminianos, o “narrador dos romances de Sebald é um tradutor da incomunicabilidade, pois enfrenta o apagamento coletivo da memória para desenterrar figuras desenraizadas pelo exílio e simbolicamente soterradas pela “tempestade” que “impele irresistivelmente para o futuro”. Ao contrário do anjo da tese IX, de Walter Benjamin, Sebald consegue se desvencilhar do sopro que vem do paraíso, e voltar para juntar os cacos da história, e tirar dos escombros os mortos, que com suas histórias e memórias revelam o lado obscuro da evolução racionalista da humanidade. De fato, os personagens de W. G. Sebald carregam experiências inexprimíveis, devido a sua carga negativa. São portadores de uma incomunicabilidade correlata de um tempo em que a exceção é a regra e que o choque e o trauma se incorporaram ao cotidiano: em que o mal, tal como Arendt (2008) defende, se banalizou”.

Há outros dois títulos de Sebald presentes na relação dos livros da promoção da Companhia das Letras: Os anéis de Saturno  – Uma peregrinação inglesa – narrativa encaminhada por um alter ego o leva a localidades onde os “traços de destruição” da história europeia disparam digressões nas quais o autor parece querer grafar a memória de um mundo cuja beleza e fascínio rivalizam com sua tendência à ruína e à deterioração – e o polêmico ensaio Guerra aérea e literatura – em que, refletindo sobre a dificuldade dos escritores alemães do pós-guerra em lidar com a destruição das cidades do antigo Reich, Sebald procura entender o recalque do trauma nazista, analisando os sentimentos de culpa e humilhação durante o período de frenética reconstrução material do país que ficara em ruínas depois da guerra.

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Trecho de Os emigrantes:

Algumas semanas depois no fim do verão, ele se matou de sua pesada espingarda de caça. Como ficamos sabendo em nosso regresso, ele se sentara na beira da cama, botara a arma entre as pernas, pousara o queixo na ponta do cano em seguida pela primeira vez desde que comprara a arma antes de viajar para a índia, disparara um tiro com intenção de matar. Quando recebemos a notícia não me foi difícil vencer o horror inicial, mas cada vez entendo melhor, certas coisas têm um jeito inesperado de retornar, muitas vezes depois de longo tempo ausentes. Pelo fim de julho 1986 passei alguns dias na suíça. Na manhã do dia 23 fui de trem de Zurique a Lausanne. Quando o trem cruzou lentamente a ponte do Aare, entrando em Berna meu olhar viajou da cidade à cadeia de montanhas. Se não estou apenas imaginando agora, lembrei-me dr. Selwyn nessa ocasião pela primeira vez depois de muito tempo. Quarenta e cinco minutos depois, para não perder a visão daquela magnífica paisagem do lago de Genebra, já deixando de lado um jornal de Lausanne comprado em Zurique, que estivera folheando, quando uma notícia chamou minha atenção: dizia que os restos mortais de Guia de montanhas Johannes Naegeli, desaparecido desde o verão de 1914, tinha sido devolvido depois de 72 anos pela geleira de Oberaar. – Assim, pois, retornam os mortos. Às vezes depois demais de sete décadas eles saem do gelo e ficam na beira da morena, um montinho de ossos polidos e pá de botas com cravos.

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OS EMIGRANTES

Autor: W. G. Sebald
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 21,00 (240 págs.)

 

 

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