Literatura

Uma história ou uma bala na cabeça

21 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Flávio de Carvalho

Um dos convidados mais esperados da FLIP deste ano foi Etgar Keret, celebrado como a principal voz de sua geração e o grande renovador da literatura israelense neste início de século. Em junho deste ano pela primeira vez um de seus livros foi traduzido e publicado no Brasil. De repente, uma batida na porta confere um toque absurdo a uma prosa coloquial.

Keret é conhecido também como cineasta e autor de quadrinhos. Como escritor, tornou-se mundialmente renomado por seus característicos contos bem-humorados, desenrolados por situações próximas tanto ao fantástico quanto ao nonsense. Seu humor é lúdico e absurdo. Sua narrativa é direta, política sem ser partidária, moralista ou ideológica.

“Uma história ou uma bala na cabeça”, ameaça um homem barbudo a um escritor no conto que abre o volume. Sua exigência é clara: uma história curta, que não despeje, abrupto como um caminhão de lixo, realidade pura sobre pessoas que enfrentam dias difíceis e que desejam algo mais. O escritor, porém, mantém-se em plena paralisia criativa, pois justamente quando obrigado pelos homens armados a inventar uma história, ele é continuamente interrompido por batidas na porta. Cada uma vem acompanhada pela aparição de uma visita indesejada, cada qual com sugestões e exigências para a história. “Aposto que coisas como esta nunca aconteceriam com Amós Oz ou David Grossman”

Marcelo Pen, professor da USP, em artigo publicado na Folha de São Paulo, mais do que absurdas, as narrativas do escritor encaixam-se mais na “categoria do “fait divers” analisada por Roland Barthes (1915-1980) em 1964. O crítico francês se refere a uma classe de informação inclassificável. […] Primo da anedota, o “fait-divers” constitui uma espécie de informação total, uma estrutura fechada. […] Muitas das narrativas de Keret seguem esse caminho, como a do homem lançado em um mundo onde as mentiras ganham vida, a da mulher que descobre um amante oculto sob a pele do marido ou do empresário cuja vida afetiva e sexual parece resumir-se aos apelos de seu cão de estimação”.

Keret, na carta ao leitor escrita para De repente, uma batida na porta, diz: “Escritores gostam de comparar seus livros a filhos, mas devo admitir que nunca entendi muito bem essa comparação. […] Uma história nunca vai correr no meio de uma rua movimentada ou tentar engolir uma pilha. Tampouco fará amizade com os colegas errados ou fumará um cigarro nos fundos da escola. […] De todos os meus livros de contos, De repente, uma batida na porta é o mais próximo de meu coração. Porque é o primeiro, e, por enquanto, o único livro que escrevi como um pai. […] A maioria dos contos neste livro não está diretamente ligada à paternidade, mas foram todos escritos pelo pai de uma criança curiosa e amada, e por detrás deles está a tentativa de explicar ao meu filho, não menos do que a mim mesmo, por que é difícil ser uma pessoa, e por que, diabos, ainda assim o esforço vale a pena”.

A importância da paternidade e da educação do filho é bem ilustrada pela situação narrada no artigo publicado no jornal O Globo, no qual Bolívar Torres conta: o escritor israelense Etgar Keret foi surpreendido por um pedido de Lev, seu filho pequeno. “Papai, me ajuda a construir uma bomba? É para jogar nos palestinos”, disse o garoto, então com sete anos. Sua justificativa era simples: o Hamas acabara de lançar mísseis em Tel Aviv, e o pai sempre lhe dissera que, quando seus colegas começavam uma briga no colégio, ele tinha o direito de se defender”. Keret teve então uma longa conversa com o filho, conforme disse na entrevista concedida ao jornal: “Primeiro eu expus as razões dos palestinos. Falei sobre a necessidade deles de independência, e sobre a humilhação diária que é não poder se deslocar livremente sem ser parado por pontos de controle. Meu filho argumentou que isso não era justificativa para lançar mísseis. Então, eu e minha esposa criamos pontos de controle pela nossa sala. Cada vez que Lev passava por lá, fosse para fazer xixi ou preparar sua lição de casa, nós o segurávamos para um interrogatório lento e tedioso. “Qual o seu nome?” “Por que quer passar?” etc. Depois de algumas horas, ele entendeu. Nunca mais tivemos conversas sobre lançar bombas”.

Pensando a diferença de sua prosa em relação a outros escritores israelenses, o próprio Keret, conforme artigo publicado pela Folha de São Paulo, diz sobre seu estilo: “Temos o costume, em Israel, de escrever em estilo elevado. Os autores têm um ‘páthos’ bíblico, e o livro ideal por aqui é o épico”. Keret diz ainda: “Não fui influenciado por esse modelo israelense, em que o escritor é um guia espiritual que tem de oferecer soluções. Sigo a tradição da diáspora judaica, de autores como Kafka e Isaac Bashevis Singer. Sou o cara que conversa com você no trem e lhe apresenta um problema, em vez de dar a resposta”.

No mesmo artigo, a tradutora, Nancy Rozenchan – professora do Departamento de Letras Orientais da USP –, diz que Keret é o único escritor israelense importante que abusa do uso de gírias. Segundo ela, ele “também é o único dos grandes autores que escreve com muita regularidade sobre temas como o sexo, mas com um vocabulário sem baixarias”. Keret, porém, a despeito da dificuldade que a prosa coloquial impõe aos tradutores, mantém com eles um diálogo aberto; ele diz: “Às vezes reescrevo trechos ou, se não fizer sentido em outras línguas, posso excluir parágrafos inteiros”.

O jornal O Globo divulgou um interessante artigo escrito por Keret, sobre os conflitos entre judeus e palestinos e sobre o desejo de paz, desesperançado. Lúcido, ele propõe: “A paz, por definição, é um acordo entre dois lados, e nesse tipo de acordo cada lado tem que pagar um preço real, pesado, não só em território e dinheiro, mas com uma verdadeira mudança de visão de mundo. É por isso que o primeiro passo para adquirir confiança em nossa caminhada até aquela antiga fantasia pode ser parar de usar a enfraquecida palavra “paz”, que há muito tempo adquiriu sentidos messiânicos e transcendentais tanto na esquerda quanto na direita, e substituí-la imediatamente pela palavra “acordo”. Pode ser uma palavra menos empolgante, mas ao menos ela nos lembra que, toda vez que a usarmos, a solução que desejamos não pode ser encontrada em nossas orações a Deus, e sim na insistência em um diálogo trabalhoso e nem sempre perfeito com o outro lado”.

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Trecho

O GORDINHO

Surpreso? Claro que eu fiquei surpreso. Você sai com uma garota. Primeiro encontro, segundo encontro, um restaurante aqui, um filme ali, sempre só matinês. Vocês começam a fazer sexo, as transas são explosivas, depois vêm também os sentimentos. E, então, um dia, ela chega toda chorosa, e você a abraça e lhe diz para se acalmar, que está tudo bem, e ela diz que não aguenta mais, ela tem um segredo, não simplesmente um segredo, algo horrível, uma maldição, algo que ela estava querendo lhe dizer o tempo todo, mas não teve coragem. E essa coisa vinha pesando nela como duas toneladas de tijolos. E ela é obrigada a dizer, ela simplesmente tem que, mas também sabe que, no momento em que o revelar, você vai deixá-la, e com razão. E logo depois disso, ela começa a chorar mais uma vez.

“Eu não vou deixar você”, você diz, “eu não vou. Eu te amo”. Você talvez pareça estar um pouco chateado, mas não está, e mesmo se estiver, é por causa do choro dela, e não pelo segredo. A experiência já lhe ensinou que esses segredos que fazem com que uma mulher desmorone geralmente pertencem à categoria de transar com um animal, ou com um parente, ou com alguém que lhe pagou por isso. “Sou uma prostituta”, elas sempre acabam dizendo, e você a abraça e diz: “Não, você não é, você não é”, ou “shhh…”, se elas continuam a chorar.

“É algo realmente terrível”, ela insiste, como se captasse essa sua tranquilidade que você tanto tentou esconder. “Na boca do seu estômago isto talvez soe terrível”, você diz a ela, “mas isso é por causa da acústica. Você verá que, no momento que você deixá-lo sair, de repente vai parecer muito menos terrível”. E ela quase acredita. Ela hesita um instante e, em seguida, pergunta: “Se eu lhe dissesse que à noite me transformo em um homem atarracado, peludo, sem pescoço, com um anel de ouro no dedo mindinho, você ainda continuaria a me amar?”. E você diz a ela “claro”, você diria que não? Ela só está tentando testá-lo para ver se você a ama incondicionalmente, e você sempre se saiu muito bem em testes. Realmente, assim que você lhe diz isso, ela se derrete, e vocês transam, ali mesmo na sala. E depois vocês continuam abraçados, e ela chora porque ficou aliviada, e você chora também. Vá entender. E, destoando de todas as outras vezes, desta vez ela não se levanta e vai embora. Ela fica com você e adormece. E você fica acordado na cama, olhando para o belo corpo dela, para o pôr do sol lá fora, a lua aparecendo de repente como se do nada, a luz prateada que toca o corpo dela, acariciando o cabelo em suas costas. E, em menos de cinco minutos, você se pega deitado na cama ao lado de um baixinho gorducho. E o cara se levanta, sorri para você e se veste sem jeito. Ele sai do quarto e você o segue, hipnotizado. Agora ele já está na sala, com os dedos gordinhos aperta as teclas do controle remoto, assiste esporte na televisão. Futebol da Liga dos Campeões. Quando perdem um passe, ele xinga, quando marcam um gol, ele se levanta e faz uma ola.

Após o jogo, ele lhe diz que tem a boca seca e o estômago, vazio. Está a fim de um espetinho, de frango, se possível, mas de carne também serve para ele. Você entra com ele no carro e dirige para um restaurante da região que ele conhece. Essa nova situação te incomoda muito, mas você não tem ideia do que fazer, os seus centros de decisão estão paralisados. A mão muda as marchas quando vocês descem para a Ayalon, como um robô, e ele, no assento ao seu lado, tamborila com o anel de ouro do mindinho, e, no entroncamento Bet Dagon, abaixa o vidro elétrico, pisca para você e grita para uma soldada que está tentando arrumar carona: “Ei, gata, está a fim de uma brincadeirinha no banco de trás?”. Mais tarde, em Azor, você come carne com ele até a barriga explodir, enquanto ele desfruta de cada bocado e ri como um bebê. E durante todo esse tempo você diz para si mesmo que é só um sonho, um sonho bizarro, sim, mas do qual você logo despertará.

No caminho de volta, você pergunta onde ele quer saltar, e ele finge não ouvir, com uma cara de coitado. No fim, você acaba levando-o de volta para casa com você. São quase três horas. “Vou dormir agora”, você diz; ele lhe acena do pufe e continua assistindo ao canal de moda. Você acorda na manhã seguinte, exausto, com uma ligeira dor de estômago. E lá está ela, na sala, ainda cochilando. Mas até você acabar sua chuveirada ela já está de pé. Ela te abraça, culpada, e você está confuso demais para dizer qualquer coisa. O tempo passa e vocês ainda estão juntos. As transas só vão ficando cada vez melhores. Ela não é mais tão jovem, e nem você, e de repente você se vê falando de bebês. E à noite você e o gordinho se divertem como você jamais se divertiu. Ele leva você a restaurantes e bares que você nem sabia que existiam, vocês dançam juntos em cima da mesa e quebram pratos como se não houvesse amanhã. Ele é muito agradável, o gordinho, um pouco grosseiro, especialmente com as mulheres. Às vezes ele se sai com umas observações que você não sabe onde enfiar a cara. Mas, apesar disso, é realmente muito divertido estar com ele. Quando vocês se conheceram, você nem se interessava por futebol, mas agora você conhece todos os times. E sempre que um de seus favoritos ganha, você se sente como se tivesse feito um desejo e ele tivesse se tornado realidade. Que é um sentimento bastante excepcional, sobretudo para alguém como você, que, na maioria do tempo, mal sabe o que quer. E, assim, toda noite você adormece com ele, cansado, diante dos jogos do campeonato argentino, e de manhã acorda novamente junto a uma mulher linda e indulgente que você ama, também, a ponto de doer.

Tradução: Nancy Rozenchan

[Fonte: Folha de São Paulo, caderno Ilustríssima]

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DE REPENTE, UMA BATIDA NA PORTA

Autor: Etgar Keret
Editora: Rocco
Preço: R$ 34,50 (256 págs.)

 

 

 

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