Literatura

Honestidade implacável

30 junho, 2014 | Por Isabela Gaglianone

desenho de Saul Steinberg

A Companhia das Letras lançou em março Um outro amor, segundo volume de Minha luta, o monumental projeto autobiográfico do escritor norueguês Karl Ove Knausgård – projeto que, ao todo, é composto por seis romances divididos em mais de seis mil páginas que revelam os detalhes mais íntimos da vida do autor e de seus familiares. No ano passado, a editora publicou A morte do pai, em que o leitor acompanha a infância do autor e o processo destrutivo que levou seu pai a beber até a morte. Neste segundo volume, Knausgård narra o início turbulento de seu segundo casamento e a descoberta da paternidade, conflituosa com suas ambições literárias. No livro, ele conta como, depois de se separar da primeira mulher, deixou Oslo e mudou-se para Estocolmo, onde começou uma nova vida, experimentando a perspectiva de estrangeiro.

Uma conversa com amigos durante o jantar pode se estender por cem páginas; saltos no tempo e lembranças revividas demonstram o pleno domínio do autor, cuja prosa concilia narrativas de episódios pontuais a longas digressões ao tempo interno das personagens. Na construção narrativa de Knausgård, as fronteiras entre memória e invenção são diluídas a tal ponto que a sua vida é recriada e ressignificada. Entre questões existenciais e reflexões sobre a escrita literária, apresenta a conturbada, mas bela história de amor de um homem por sua mulher e seus filhos. Um romance honesto e profundo.

Segundo Zadie Smith, em comentário crítico ao The New York Review of Books, “é notável a habilidade de Karl Ove de estar presente em sua própria existência, ao mesmo tempo que tem consciência dela. É como se a escrita e a vida estivessem correndo juntas. Ficamos completamente imersos. Vivemos a vida dele com ele”. E, nas palavras do crítico James Wood, o livro é “extraordinário… de uma honestidade implacável. Cria espaço tanto para o lírico quanto para o prosaico, para o chocante e o banal”. O celebrado crítico – autor de Como funciona a ficção, publicado no Brasil pela CosacNaify –, elogiando muito a qualidade da narrativa de Knausgård, foi um dos responsáveis pelo estrondoso sucesso da série de romances – que vendeu 500 mil exemplares, num país de 5 milhões de habitantes.

Ao colocar a si mesmo como narrador e protagonista da série, a obra foi exaustivamente comparada a Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Porém, levanta-se uma questão ética literária, em torno de Knausgård, pois nos seis volumes de Minha Luta, o autor não poupou ninguém que conhecesse. O título Minha luta, o mesmo de uma obra assinada por Adolf Hitler, sublinha sua intenção de polemizar e provocar.

Segundo resenha de Camila von Holdefer, na “série de livros em que narra detalhadamente a própria vida, Karl Ove Knausgård não poupa os que lhe são (ou foram) próximos. Os leitores tampouco são preservados – todavia, a julgar pelo êxito comercial de Minha luta, não queremos nos manter a salvo. Não nos incomoda a confrontação com os aspectos íntimos da vida de um autor, nem, aliás, a questão ética por trás do ato de revelar a intimidade daqueles que já morreram e daqueles que, ainda vivos, não concordam com a enorme exposição. Num tempo em que a fronteira entre o público e o privado tende a assumir contornos vagos, nem sempre é fácil apontar quais revelações parecem excessivas e despropositadas. Quando ocupamos a posição do espectador que assiste a uma performance inclassificável e inusitada – mas aparentemente genuína –, parece natural que deixemos momentaneamente a avaliação crítica de lado para substituí-la pela total atenção. A capacidade crítica será restituída mais tarde, quando, afinal, teremos tempo para medir o impacto do que foi visto. Quanto maior o caráter polêmico de uma exibição, quanto mais privado um panorama ou informação nos parece, quanto mais visceral a encenação, tanto maior, e mais estupefata, a sua audiência. É o famoso fetiche por espiar pelo buraco da fechadura, por conferir o drama alheio e comparar com o que se vive. Se o clamor do artista por atenção for suficientemente interessante, portanto, responderemos bem. Longe de desencorajarem, então, os sórdidos segredos da família Knausgård só fazem contribuir para o enorme burburinho em torno da série”. Na mesma resenha, von Holdefer analisa: “Das lembranças remexidas, qualquer que seja seu teor, Karl Ove retira belas reflexões – e sobretudo belas imagens. Sua escrita, clara e envolvente, tem inegável qualidade descritiva. […] O recurso tão presente na literatura feita de memórias, aquele de evocar lembranças fragmentadas cujos contornos indefinidos ou aspecto onírico só contribuem para sua indistinção ou inverossimilhaça, está ausente. Knausgård nos dá um realismo atroz. Um realismo que tem a força (e o intuito) de um tapa no rosto”.

Daniel Galera, em resenha publicada no jornal O Globo, pontua: “Um outro amor é mais forte que o volume inaugural. Tomados em conjunto, como devem ser, eles se tornam ainda mais fortes do que as partes. Dessa vez Knausgård elege como assuntos principais a sua mudança da Noruega para a Suécia, o relacionamento com a segunda mulher, Linda, a paternidade, a rotina familiar, as longas conversas com o amigo Geir e o esforço de defender o espaço sagrado da escrita contra as ameaças da vaidade, da falta de tempo e das exigências profanas da vida literária. Desses núcleos emana a espiral de autoanálise, digressões intelectuais e descrições minuciosas de banalidades que também marcava “A morte do pai”. Knausgård se detém em diálogos sem qualquer conteúdo (sobre o espaguete fervendo numa panela: “— A cara está boa — eu disse / — É, está mesmo — ele concordou”) para em seguida enfileirar uma sequência poderosa de parágrafos sobre a perturbação que experimenta ao flagrar sua mulher sentada no colo do pai como uma garotinha”. Segundo Galera, é difícil “entender como este homem em particular realiza o truque de nos tragar para dentro das minúcias de sua vida cotidiana e de suas ruminações íntimas. E como saber que nada disso é inventado? Como medir o grau de distorção que as tintas impõem sobre o tema? O autor deixa claro em entrevistas que é tudo verídico, e é necessário um ceticismo extremo para duvidar disso, mas eis um bom exercício de pensamento: e se daqui a dez anos ele escrever outro livro mostrando como inventou quase tudo? O que mudaria? O fato é que a circularidade da narrativa, o estranho magnetismo dos trechos prosaicos e os picos de alegria e desespero constroem um efeito irresistível de vida sendo vivida, e não se vira o rosto para algo assim”. Ele ainda cita Knausgård, que disse: “O inventado não tem valor nenhum, o documental não tem valor nenhum. A única coisa que para mim ainda tinha valor, que ainda era repleta de significado, eram diários e ensaios, a literatura que não dizia respeito à narrativa, não versava sobre nada, mas consistia em uma voz, uma voz única e pessoal, uma vida, um rosto, um olhar que se podia encontrar. O que é uma obra de arte, senão o olhar de uma outra pessoa?”

A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.

 

UM OUTRO AMOR

Autor: Karl Ove Knausgård
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 41,65 (512 págs.)

 

 

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