matraca

ilha mínima do eu

5 maio, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Desenho de Odilon Redon

Monodrama é considerado o livro mais político, ao passo que também o mais irreverente e emocionado, de Carlito Azevedo, um dos principais poetas brasileiros da atualidade.

O livro é composto por poemas extensos, nos quais, dentre uma multiplicidade de personagens, surge com predominância a figura do imigrante, do clandestino, do outro a quem o mundo hostil fecha as portas. Há um profundo desencanto político nos poemas iniciais, que ramifica-se no solo autobiográfico da série “H.”, texto que elabora liricamente a experiência da doença e morte da mãe, com toda a ironia e a emoção de quem se depara com um “Pálido céu abissal”.

Eduardo Sterzi, que considera o livro uma “das obras literárias especialmente relevantes dos últimos anos”, analisa que, proeminentemente político, ele tem, como circunstância de fundo, “a de uma guerra civil, nunca de todo declarada, que acaba por se confundir com a própria vida e da qual ninguém sai completamente ileso: «eu disse: e é sempre / como um país / se dando conta / de que entrou / em guerra, um dia / um país se dá conta / de que a guerra / de que todos falam é / a sua guerra, o / país é o seu / país, e o que chamam / de a guerra é a / sua vida”.

Em entrevista concedida a Guilherme Freitas, para o jornal O Globo, lê-se que “Carlito atribui a uma “crise particular” o silêncio de oito anos após a antologia “Sublunar”, que reunia poemas de “Collapsus linguae” (1991), “As banhistas” (1993), “Sob a noite física” (1996) e “Versos de circunstância” (2001). Alguns traços desse impasse aparecem na conversa — a morte da mãe, Hilda (que provoca o texto mais perturbador do livro, “H.”), as inquietações políticas e sociais, o fim (definitivo?) da revista “Inimigo rumor”, catalisadora de uma geração de poetas — e indicam que a crise particular se desdobrou em crise de linguagem. Desse momento crítico surgiram poemas que Carlito chama de “notas da ruína” — mas que pouco tem de sombrios, graças aos “pontos luminosos” que o amor abre por todo o livro: “Em ‘Monodrama’ sugiro que o que amamos de verdade é o que gostaríamos de, absurdamente, salvar da aniquilação que nos espera”. Na mesma entrevista, Carlito diz, sobre a recorrência da figura do imigrante nos poemas do livro: “Aproveitando-me da poeta Ingeborg Bachmann, que, em circunstâncias históricas bem diversas das atuais, escreveu que “Todo poeta é judeu”, e de Kafka, que certa vez anotou em seu diário que “todo escritor escreve numa língua estrangeira”, posso dizer que todo poeta é imigrante, onde quer que esteja. Para um poeta seria impossível ter criado a metáfora cínica “abaixo da linha de pobreza”, com que se refestelam os nossos líderes e economistas, metáfora com que insinuam a ilusão de que o que separa os miseráveis de um estado um pouco mais digno de existência é apenas uma linha, tênue, facilmente rompida por qualquer mero esforço, pela borracha de uma nuvem ocasional perdida numa mudança de ventos. Um poeta deveria criar, hiperbolicamente, a expressão “abaixo das placas de chumbo da pobreza”, ou “por trás das grossas cercas de arame farpado da pobreza”. Nem se iludam, miseráveis de todo o mundo, debandando como aves migratórias de lugares tornados irrespiráveis, de que poderão rompê-las sem uma força quase sobrenatural. Quando assistimos a essas gigantescas levas de imigrantes ultramiseráveis que invadem a Europa e os Estados Unidos, para fúria e desespero da ultradireita mundial florescente, e sem mover um centímetro que seja a esquerda de sua indolência de mendigo farto, algo lindamente ironizado em “Abril”, de Nani Moretti, você sente que é ali com eles que você deve estar, se está interessado em algum tipo de transformação, e não na administração do desastre”.

A perplexidade lúcida do poeta revela-se numa “poesia do cotidiano”, profunda porque mundana, real, como Alice Sant’Anna analisou, em artigo publicado no blog da editora Coscanaify:[…] Por exemplo, na série “H”, […] Carlito Azevedo narra a despedida da mãe. Os fragmentos são de uma beleza melancólica, e parece que o sofrimento fica ainda mais agudo quando, ao deixar o cemitério, o poeta caminha diante de vários letreiros de restaurantes e elege como local ideal para o “banquete fúnebre” o Habib’s. A estranha aparição da rede fast-food de comida árabe em nada diminui a altivez da prosa poética. Pelo contrário, torna o triste ainda mais triste. […] Nada pode ser mais suntuoso que uma refeição de adeus no Habib’s”.

“Assustadora simultaneidade: no exato instante em que dou início a meu processo de mastigação da insossa massa branca de uma esfiha me dou conta de que não procurei me informar sobre aquilo que, no futuro, talvez me será, obscenamente, questionado. Ou seja, se no girar dos dados imaginários, à minha mãe lhe coube a morte boa ou a morte má. Tal simultaneidade me faz desconfiar, e por um segundo ter a arrepiante certeza de que o gesto físico da mordedura na massa gerou o pensamento tanto quanto provocou, através do conseqüente rasgão na esfiha, a liberação de uma nuvem de vapor do recheio de carne morta. De meu pai fiquei sabendo que gritava enfurecido na cama do hospital e tentava esmurrar os médicos que o atendiam até que o fulminasse um enfarto. Será isso a morte má? Senti na época orgulho desse triste Jacó em luta com seus anjos da morte, impermeável a qualquer tipo de serenidade, como sempre foi em vida. Se bem a conheço, minha mãe não reclamou muito nem esboçou qualquer gesto em sua hora, o que quer que estivesse sentindo. De todo modo, e ainda mais orgulhoso, imagino-a em minha fantasia me dizendo:”

Bernardo Carvalho, em resenha, resume: “Se alguém ainda quiser saber para que serve a literatura, a resposta está dada: para que de vez em quando alguém escreva um poema como esse “H.”, do Carlito Azevedo”.

 

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– Comparada com a larga eternidade de nada sentir, nada provar, nada tocar, ver e ouvir que nos espera, a morte no sono, como dizem que coube a Chaplin, vale o que valem as dez costelas partidas, as orelhas arrancadas, os dedos decepados, a laceração horrível entre o pescoço e a nuca, a equimose larga e profunda nos testículos, o fígado lacerado, o coração lacerado, o rosto inchado irreconhecível, os hematomas, última forma física assumida por Pasolini nesse louco planeta que agora, para você, gira também sem mim. (Carlito Azevedo, «H.»)

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MONODRAMA

Autor: Carlito Azevedo
Editora: 7 Letras
Preço: R$ 29,83 (156 págs.)

 

 

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