O feitiço da ilha do Pavão, de João Ubaldo Ribeiro, foi publicado originalmente em 1997, após um silêncio editorial de oito anos – dois anos depois, ele lançaria o polêmico A casa dos budas ditosos.
O romance narra uma epopeia, da qual participam os habitantes de uma ilha imaginária no recôncavo bahiano, no Brasil colonial. A ilha do Pavão, geografia fantástica, é o microcosmo de uma sociedade composta por colonizadores portugueses, índios e negros – mundo ficcional que é também a representação de um povo, com suas peculiaridades de formação, seus pontos de tensão, suas glórias.
Uma utopia, mistura de crítica histórica e farsa de costumes, povoada por arquétipos caracterizados por variações linguísticas.
“Na verdade, não se fala na ilha do Pavão. Jamais se escutou alguém dizer ter ouvido falar na ilha do Pavão, muito menos dizer que a viu, pois quem a viu não fala nela e quem ouve falar nela não a menciona a ninguém. […] É sabido, porém, que a ilha frequenta os sonhos e pesadelos da gente do Recôncavo, que muitas vezes desperta no meio da noite entre suores caudalosos e outras vezes para entrar em delírios que perseveram semanas a fio. […] E muitos desaparecidos que nunca mais foram vistos podem bem estar na ilha do Pavão, embora certeza não haja, nem se converse ou escreva sobre o assunto”.
João Ubaldo, em 2008, recebeu o Prêmio Camões pelo “alto nível de sua obra literária”, considerada “especialmente densa das culturas portuguesa, africanas e dos habitantes originais do Brasil”. Ao longo de sua trajetória literária, ele ficou conhecido sobretudo pela ironia e por um humor muito particular, aliados a um vocabulário inusitado e, muitas vezes, uso erudito da língua. Como citou o jornal O Globo, no qual era cronista, quando da morte do escritor, em julho de 2014, Ubaldo certa vez disse: “Gosto da língua portuguesa. Acho que ela está perdendo recursos devido à nossa ignorância, mas ainda é uma língua bonita, flexível, expressiva, rica em nuances. E junto a isso eu sou, digamos que por origem, um autor barroco. Alguns dos meus prosadores preferidos, como Padre Vieira, são barrocos. Essa minha linguagem, sei lá, convoluta, eu acho que é meio abarrocada”.
Sobre O feitiço da ilha do Pavão, o crítico Alfredo Monte, em resenha, critica: “Existe um tipo de best seller brasileiro para exportação,cuja fórmula foi fornecida pela obra de Jorge Amado e que repousa na ambientação histórica e regionalista (a modernidade urbana não deve fazer parte dos nosso universo, a não ser em forma de favela e banditismo), e na qual a libido aflora mais forte do que o poder e a religião. João Ubaldo Ribeiro, em O feitiço da ilha do Pavão nos dá um típico representante dessa literatura made for gringo, destinada a aliviar o tédio de países nórdicos, germânicos ou saxões, com paisagens exuberantes, costumes exóticos e tipos femininos calientes. A ostra e o vento”. Monte prossegue sua crítica, ironizando: “Vicissitudes sexuais à parte (a ostra ficará ao vento, enfim, eis o grande suspense), há um trunfo esotérico na concepção da Ilha do Pavão (já pensou, leitor, no frisson lá fora: exotismo, erotismo e esoterismo num mesmo livro?): o Capitão Cavalo descobre uma esfera que consegue deter o tempo e controlar o futuro. E a ilha se torna “enfeitiçada”, uma rival da Avalon de Marion Zimmer Bradley. Como todos se lembram, as brumas de Avalon nada mais eram do que o estado ambíguo do santuário druida: ele ao mesmo tempo está e não está no mundo, podendo ser visto ou não. Graças ao Capitão Cavalo e seus amigos, acontece o mesmo com a Ilha do Pavão, a qual, assim, mantém-se a salvo das mazelas européias. E o leitor pode se deitar numa rede e espreguiçar-se gostosamente, pois tudo está bom quando acaba bem. Eta, bem bom… Nada de inquietações, só um pouquinho de agitação que é bom como tempero, mas que tudo fique mesmo na chanchada e no deboche. Que os gringos não pensem que sob os céus brasileiros haja desassossego metafísico ou dúvidas existenciais. Nada disso, basta que haja mulher pelada e o resto é silêncio”. Monte conclui lamentando o que chama de apelo e gratuidade.
Já a crítica Denise Salim Santos, professora adjunta da UERJ, pontua, em artigo publicado na revista Matraga, como João Ubaldo utiliza os recursos estilísticos, privilegiando substantivos, adjetivos e verbos na construção do discurso das diversas vozes das personagens e do narrador; diz ela: “A história das palavras nos permite refletir sobre a história das sociedades em geral, pois os movimentos da linguagem podem revelar ou apagar fases do desenvolvimento, progresso e evolução social; os medos e desejos; os preconceitos e conhecimentos do homem em uma determinada época, em um momento historicamente desenhado. Assim, pelas palavras, é possível chegar-se a grandes sucessos ou violências institucionalizadas que marcam uma sociedade quando, por exemplo, cerceam-nas, às vezes de forma sutil, mas permanente e dolorosa, para que sejam preservadas certas hierarquias. A falta da palavra ou do termo adequado ao que se pretende dizer é antes um problema para qualquer indivíduo, não só de um escritor ou de nosso escritor. O feitiço da ilha do Pavão firma-se como uma reavaliação da herança cultural e histórica da formação de um povo sob um olhar diferenciado, captador da mobilidade dos grupos sociais sob a influência de um poder que troca de mãos pela engenhosidade do escritor. A todo tempo a relação dominado x dominador fica exposta. Três etnias alinham-se na formação da nacionalidade brasileira, e o confronto elite x povo será constante em toda a narrativa”.
Para o pesquisador Thiago de Oliveira Ribeiro, no artigo “Utopia e colonização em: O feitiço da ilha do Pavão, João Ubaldo Ribeiro”, o livro cria “uma discussão sobre a identidade nacional e a formação do povo brasileiro, a miscigenação das raças e das culturas. A adaptação do índio e negro aos costumes dos colonizadores brancos detentor do conhecimento e do poder nas relações sociais, que dentro do romance, troca de lado para que os outros grupos possam mostrar suas versões dos fatos. A crítica ganha força quando o autor dá a vez para os que foram esquecidos de ser mencionados na história, a sabedoria dos índios com os elementos da natureza, a força física e a alegria de viver do negro, as experiências e as visões de mundo de ambos contribuíram bastante para a formação do povo brasileiro”.
O feitiço da ilha do Pavão foi novamente publicado em 2011, pela editora Alfaguara, que vem relançando toda a obra de João Ubaldo.
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“Não se deve rir da desgraça alheia, nem fazer pouco dos desventurados, até porque aquilo que a um vitima sói muitas vezes sobrevir a outro, não raro piormente. Sabe toda a consciência cristã que bem pouco caridosa é a ausência de compaixão e carece de desculpas aquele que vê motivo de mofa no sofrimento do próximo. São tantas as penas inventariadas nos infernos, obrigatoriamente pagas por pecados e más ações deste defeito derivados, que livros com mais de cem vezes as páginas deste cá, o qual tão desutilmente vos ocupa, não seriam bastantes para conter-lhes os resumos…. O mundo é perfeito, já diziam os antigos, e com eles nos vemos obrigados a concordar, eis que, se tudo se passasse como quer cada um de nós, não duraria esse mesmo mundo mais do que três peidos de mula, louvado seja Deus, para sempre seja louvado.”
Autor: João Ubaldo Ribeiro
Editora: Alfaguara
Preço: R$ 34,93 (272 págs.)