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Inexoráveis lembranças

14 abril, 2016 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Evandro Carlos Jardim

O premiado escritor Luiz Ruffato acredita que cada romance é uma tentativa de reconstruir a história. É o que ele faz no recentemente reeditado De mim já nem se lembra. O livro foi publicado originalmente em 2007, como literatura infanto-juvenil, para um programa de educação de jovens, e, posteriormente, em 2011, reformulado e transformado em literatura adulta. É o livro em que o autor diz ter mais se exposto, e no qual tentou fazer uma confluência do real e do imaginário.

Elaborado a partir de uma correspondência fictícia entre sua mãe e seu irmão torneiro-mecânico na cidade de Diadema situada na região do ABC paulista, De mim já nem se lembra relata as principais mudanças pelas quais a sociedade brasileira atravessou durante a décade de 1970.

O romance trata de assuntos caros ao autor: a família, o tempo, a memória. Ao abrir uma pequena caixa encontrada no quarto da mãe falecida, a caixa na qual ela “abrigara seu coração esfrangalhado”, o narrador se depara com um maço de cartas cuidadosamente atadas por um cordel. Escritas pelo irmão, vitimado por um acidente automobilístico, e dirigidas à mãe, essas cinquenta cartas reconstituem um passado: ao mesmo tempo que ilustram as mudanças políticas, econômicas e culturais durante a ditadura militar brasileira, convidam o leitor a espreitar a memória de uma família com “olhos derramando saudades”.

Ruffato insere-se na tradição do romance epistolar; porém, não retrata uma troca de correspondência ordenada cronologicamente, senão apenas a voz, que no espaço e no tempo é imprecisa, da ausência.

Seu protagonista, em meio às cartas que escreve para a mãe, narra seu cotidiano e aos poucos vai dando espaço às preocupações políticas com a ditadura e ao envolvimento crescente com o sindicato. O livro termina às vésperas das greves no ABC que abririam caminho para a fundação do Partido dos Trabalhadores.

Em entrevista ao jornal O Globo, o autor provoca: “Tudo que está no livro é verdade, mas tudo que está no livro é ficção. Meu irmão, minha mãe e outros parentes são citados com os nomes reais, há um personagem secundário com meu nome, as questões nas cartas do irmão são reais, o relato sobre a morte da mãe é próximo do que aconteceu comigo. Mas quem disse que as cartas existem? Não garanto”. Ruffato diz que, no livro, “quis falar da ditadura de uma forma mais direta, sem ser explícita. A ditadura é vista por um trabalhador que a princípio não entende muito bem o que está acontecendo e vai compreendendo aos poucos, por conta própria”. Na entrevista, que foi realizada no final do mês passado, Ruffato, questionado sobre o significado do momento em que se encerra o livro, em 1978, às vésperas da greve do ABC, para o país, avaliou: “O romance fala de uma personagem que ajudou a construir essa nova etapa, mas não era um líder, era alguém que sonhou junto. Falando como cidadão, eu também sonhei junto. No momento atual, é importante reconhecer que a fundação do PT e os mandatos do Lula foram fundamentais na história política do país, os números mostram como a vida da população melhorou. Ao mesmo tempo, é uma grande frustração ver que o sonho se transformou em pesadelo, ver a derrocada de algo que acreditamos que poderia transformar o país”.

Em outra entrevista, concedida à revista Carta Maior, Ruffato declarou: “Toda a minha escrita se constituiu como parte de uma decisão política. Na literatura de ambientação urbana no Brasil, não há representações da classe-media baixa, do trabalhador. E isso não é só na literatura não. Veja bem, no Brasil há inúmeras ruas com nomes de corruptos notórios, nunca vi uma rua chamada operário fulano de tal. Fui operário e fruto de uma família operária. Decidi escrever sobre isso. Representar esse universo na literatura é uma decisão política. Claro, essa foi uma decisão estética também… eu não acredito que estética e politica sejam coisas que estejam separadas. Então, quando tomei essa decisão, de escrever sobre o universo do trabalhador, queria desarmar a imagem profundamente caricata que o trabalhador pobre e de classe-média baixa tem na literatura brasileira. Além disso, tinha um problema também de linguagem. Veja bem, não é porque você vai descrever pessoas pobres que a linguagem e a psicologia têm que ser pobre. Eu me voltei muito contra esse preconceito”.

 

A Companhia das Letras disponibiliza um trecho do romance para visualização.

 

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Diadema, 12 de Janeiro de 1975

 

Mãe,

 

Cheguei bem. A viagem de volta é sempre  ruim, porque os anos passam e vejo que é cada vez mais difícil pensar em voltar e morar aí em Cataguazes. Deste vez andei mais pela cidade, vi alguns amigos, encontrei outros que também estão morando aqui em São Paulo e a   sensação que fica é de que nunca mais vou voltar. Isso é muito triste, porque aqui não é o meu lugar. Mas também sinto que aí também já não é o meu lugar. Ou seja, não sou de lugar nenhum. E isso dói dentro da gente. Eu vinha no ônibus, a noite cheia de estrela, e não consegui nem dormir. Tanta coisa passa pela cabeça da gente. O seu Volfe, que agora é diretor lá na firma, mas continua legal como sempre, me viu de cabeça baixa lá e veio falar comigo e me deu uns conselhos, ele falou que ele também sente isso, de estar num lugar distante de onde ele nasceu, que nem fala a mesma língua – ele fala esquisito para caramba, mas agora eu já acostumei, no começo não entendia quase nada. Foi bom conversar com ele, mas agora que terminei com a Nena eu fiquei mais sozinho ainda. Porque no tempo em que nós namoramos, fiquei apartado da turma da pensão e mesmo da firma, e deixei de jogar bola com eles e de ir nos lugares que eles vão, e então as coisas estão neste pé.

No carnaval o pessoal vai para um lugar perto daqui, Praia Grande, e me convidaram, talvez eu vá junto com eles, apesar de não gostar da bagunça do carnaval, mas eles falaram que vão para descansar, então acho que vou na companhia deles. Mas não se preocupe, eu sei me cuidar direitinho.

 

Célio

 

Mãe, estou pensando em passar o feriado da Semana Santa na roça em Rodeiro, o que a senhora acha ? A senhora poderia ir ?

 

(Gostei muito do Paulinho. Acho que a Lúcia esta em boas mãos. Nós lembramos que jogamos muita pelada juntos na época que a gente Morava na Vila Teresa. Espero que a Lúcia acerte com ele e que eles fiquem juntos.

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DE MIM JÁ NEM SE LEMBRA

Autor: Luiz Ruffato
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 24,43 (144 págs.)

 

 

 

 

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