Literatura

Insólito desconcertante

20 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone

O cubano Virgilio Piñera (1912-1979) é considerado um dos mais autênticos escritores do continente americano. Sua prosa é marcada por um humor sarcástico, porém melancólico. Contos frios, publicado originalmente em 1956, reúne os temas que orientam sua obra literária, o absurdo, a angústia existencial, o humor negro.

Publicado no Brasil em 1989, o livro acaba de ser reeditado pela Editora Iluminuras, mantendo a tradução feita pela crítica e especialista na obra do cubano, Teresa Cristófani Barreto, professora do Departamento de Letras Modernas da USP. 

Josely Vianna Baptista, em artigo publicado na Revista USP, dialoga com a tradutora da presente edição, e pontua: “Em seu ensaio A Libélula, a Pitonisa, publicado no Brasil em 1996, Teresa Cristófani Barreto nota que Virgilio Piñera, a quem é dedicado seu estudo, “nega a mimese do discurso”. E, curiosamente, o que mais chama a atenção nesse seu trabalho é um método de composição que, sem “mimetizar” a forma de Piñera, desenha, pelo recurso da colagem/montagem, um tema recorrente na poética do autor cubano: o retalhamento do corpo, da carne – avatar figurado da própria linguagem”.

Na década de trinta, Piñera mudou-se para Havana, onde estudou filosofia e letras e passou a colaborar na revista Espuela de Plata, fundada pelo grande poeta José Lezama Lima, de 1939 a 1941. Em 1942 e 43, editou dois números da sua revista, Poeta. Nos anos seguintes, de 1944 a 1953, colaborou na revista Orígenes, editada por Lezama Lima e José Rodríguez Feo, mas manteve-se à margem do grupo de poetas que reuniu-se em torno da revista e que posteriormente representaram um grupo, conhecido como Orígenes. Alguns anos depois, Piñera exilou-se na Argentina, antes da Revolução Cubana, em busca de melhores condições econômicas. Enquanto em Cuba seu trabalho era desconhecido, na Argentina logo obteve reconhecimento de grandes escritores, como Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Ernesto Sabato, Silvina Ocampo e mesmo do polonês Witold Gombrowicz – cujo romance Ferdydurke, Piñera traduziu para o espanhol.

Segundo José Rodríguez Feo, na Introdução a Contos Frios, em 1942 Piñera havia surpreendido a todos os escritores e críticos cubanos, com a publicação de seu primeiro conto, “O conflito”, que “revela suas reflexões sobre o tempo e a condição humana, que constituem a medula de seu pensamento, e põe a manifesto essa sua maneira tão insólita e desconcertante de narrar fatos que parecem transcorrer em um mundo regido pela insensatez e pela demência”. De acordo com a análise de Feo, “Piñera consegue evitar o perigo da inverossimilhança, que poderia ser imputada a muitas situações e criaturas suas, servindo-se de uma linguagem coloquial e de um estilo realista que as fazem, curiosamente, críveis”. Quanto ao humor sarcástico característico de Piñera, Feo aponta que “irrompe desde os primeiros relatos o humor negro, que flui como um ácido corrosivo através de grandes zonas de corrosão narrativa e teatral. Sua definição da essência cubana explica, em parte, a comicidade com que tenta mitigar a condição trágica desses personagens que nos apresenta em uma pugna constante com as terríveis exigências em que se vêem envolvidos”.

No artigo “Virgilio Piñera – Devorador de Lezama Lima”, publicado também na Revista USP, Teresa Cristófani Barreto aponta que a literatura cubana teve o privilégio de contar, concomitantemente, com dois “Maestros”: Lezama Lima e Virgilio Piñera. Não se trata apenas de um epíteto respeitoso outorgado pelos admiradores de um e outro. Trata-se, na verdade, de um jogo de alteridades jogado por um poeta que escreve como falam as lavadeiras, que produz “uma poesia exclusivamente da boca como a saliva”, chegando quase a interditar o que estaria para ser dito para enfrentar o Outro, o poeta quase ilegível em sua erudição desafiadora, difícil e estimulante. Piñera vai levar às últimas conseqüências a inversão da frase lezamiana, correndo o risco de desafiar os próprios limites do literário”. Barreto conta que, em 1942, quando escreveu o poema “La Isla en Peso”, “no qual declara sua preferência pela poesia que escorre como saliva da boca do poeta, Virgilio Piñera faz uma severa constatação a respeito da própria obra: descobre que Lezama Lima é seu grande fantasma”. A crítica explica: “O barroquismo de Lezama é erótico, já que reproduz, quase ao infinito, o prazer pelo jogo retórico, que por sua vez parodia a palavra comunicativa, como a geração de descendência é parodiada pelo jogo erótico. O dito interdito de Virgilio Piñera é libertino. Aprecia o que Lezama Lima despreza, elude o próprio Lezama e faz dele seu espaço paradigmático, para sempre fantasmal”. É nesse sentido que Barreto analisa os “Contos frios”, diz ela: “são frios esses contos não só porque, como deseja o Mestre, “se limitam a expor os simples fatos”. São frios porque foram esfriados, porque se recusam a provar do erotismo retórico, quer dizer, são indiferentes, frígidos. Mais ainda, sua frieza anda paralela ao aturdimento”.

 

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São frios estes contos porque se limitam a expor os puros fatos. O autor estima que a vida não premia nem castiga, não condena nem salva, ou, para sermos mais exatos, não consegue discernir essas complicadas categorias. Só pode dizer que vive; que não lhe exijam qualificar seus atos, dar-lhes um valor qualquer ou esperar uma justificativa ao final de seus dias. Na verdade, deixamos correr a pena entusiasmados. De pronto as palavras, as letras se entrelaçam, se confundem; acabamos não entendendo nada, recaímos na infância, parecemos crianças com balas nas bocas. E então, espontâneo, ruidoso, brota esse misterioso balbucio:

ba, ba, ba, ba… 

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CONTOS FRIOS

Autor: Virgilio Piñera
Editora: Iluminuras
Preço: R$ 26,60 (197 págs.)

 

 

 

 

 

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