Literatura

Jornalismo histórico e literário

24 junho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Para Heródoto, viajar é sinônimo de esforçar-se, uma tentativa de conhecer tudo, a vida, o mundo, a si próprio”.

kapuscinski

Ryszard Kapuscinski (1932 – 2007) foi um prestigiado repórter e escritor polonês. Minhas viagens com Heródoto – Entre a história e o jornalismo é uma narrativa viva de como, no começo de sua carreira, quando era mandado a locais remotos e, para ele, indecifráveis, tais como Índia ou China, contando apenas com um inglês rudimentar e trabalhando sob condições precárias para órgãos estatais do governo totalitário polonês, encontrou companhia, guia e refúgio espiritual, no clássico livro História, do grego Heródoto de Halicarnasso, escrito no século V a.C. O livro foi um presente, que o jornalista ganhou antes da primeira viagem, e nunca deixou de acompanhá-lo em suas jornadas.

Em Heródoto, Kapuscinski encontrou a inspiração intelectual que iria motivar toda a sua carreira: o desejo de viajar pelo mundo e contar o que via. A História teria sido a “primeira grande reportagem da literatura mundial”, relatando os fatos e costumes da vida dos povos “bárbaros” que o grego visitou conforme penosamente viajava; umais do que uma homenagem, Kapuscinski vê no texto grego uma maneira de compreender o mundo desde seus primórdios, um elogio à diferença e à ideia de que o conhecimento de outros povos e culturas acaba por servir também como conhecimento próprio, espelhado.

Segundo o jornalista, no “mundo de Heródoto, o único depositário da memória é o próprio ser humano. Para ter acesso a algo que ficou nela guardada, é preciso chegar a um homem e, quando esse homem vive longe de nós, temos de ir ao seu encontro, partir em viagem. Quando o encontrarmos, sentaremos ao seu lado e escutaremos o que ele tem para contar – ouvir, conservar na memória e, se possível anotar. É assim que também começa uma reportagem – é de uma situação como essa que ela nasce”.

Com uma prosa precisa e envolvente, Kapuscinski é autor de livros clássicos do jornalismo literário, nos quais trata de conflitos no Oriente Médio, África e Ásia, como O xá dos xás [Companhia das Letras, 2012], uma cobertura jornalística brilhante sobre a queda do último xá iraniano.

Traduzido por Tomasz Barcinski, Minhas viagens com Heródoto foi publicado no Brasil em 2006 pela Companhia das Letras.

A editora disponibiliza um trecho para visualização.

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Minhas andanças vez por outra me levavam a vilarejos próximos da fronteira. Isso ocorria muito raramente e, nessas ocasiões, quanto mais eu me aproximava da fronteira, mais a região se mostrava deserta e mais difícil era encontrar pessoas. O vácuo aumentava o mistério da região em si e, como pude constatar, na faixa da fronteira reinava um silêncio sepulcral.

Esse mistério e esse silêncio me atraíam e intrigavam. Sentia-me tentado a ver o que havia mais ao longe, do outro lado. O que se sente numa hora dessas? Em que se pensa? Teria que ser um momento de grande emoção, excitação e tensão. O que havia do outro lado? Teria que ser diferente.

Mas o que significa “ser diferente”? Qual seria a sua aparência? Com que se pareceria? Quem sabe fosse desprovido de qualquer semelhança com tudo o que eu já conhecia e, portanto, seria incompreensível e inimaginável? Na realidade, porém, o meu maior desejo, um desejo que não me deixava em paz e me mantinha em constante estado de excitação, era extremamente modesto: eu queria apenas poder desfrutar do mais simples dos atos – atravessar a fronteira.

Queria apenas poder atravessar uma fronteira, não importava qual delas; para mim, um destino ou uma meta não eram importantes, o que importava era aquele ato quase místico e transcendental de atravessar a fronteira.

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heródoto

 

MINHAS VIAGENS COM HERÓDOTO – ENTRE A HISTÓRIA E O JORNALISMO

Autor: Ryszard Kapuscinski
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 36,40 (312 págs.)

 

 

 

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