Luis Martins foi um grande cronista da vida boêmia do Rio de Janeiro. O bairro carioca da Lapa, com seus arcos e prostitutas, povoado por escritores e bebedores, tornou-se, sob sua letra, um universo literário vivo.
O romance de estréia de Martins, Lapa, publicado originalmente em 1936, mostra o bairro e a cidade de maneira crítica, escancara os meandros de sua miséria. Noturno da Lapa, lançado quase três décadas depois e vencedor do Prêmio Jabuti em 1965, contemporiza e retrata o cenário sob uma perspectiva mais amena.
Ambos títulos foram reeditados pela editora José Olympio e voltam às livrarias, integrando os títulos escolhidos como parte do projeto Biblioteca Rio 450, criado pela Prefeitura do Rio de Janeiro neste ano de data redonda para relançar títulos importantes para a história da cidade. As duas obras, indissociáveis, são vendidas em conjunto.
Lapa, romance considerado brilhante, foi censurado pelo governo do Estado Novo, considerado um texto subversivo e imoral, foi apreendido e destruído e Luis Martins, por isso, exilou-se numa fazenda no interior de São Paulo, pertencente à família de sua mulher, a pintora Tarsila do Amaral. Noturno da Lapa, livro que, desta vez sob o olhar de suas memórias, retoma a narrativa censurada.
O primeiro romance, como o próprio Martins define, em sua nota introdutória, “é uma crônica trágica da prostituição carioca”. Uma obra que ficou (pouco) conhecida como clandestina, hoje, décadas depois, impressiona pelo impacto literário e ousadia. Lapa fora originalmente intitulado “Prostituição”; pouco antes de seu lançamento, Martins alterou o título por sugestão de Jorge Amado. A narrativa acompanha a errância solitária do jovem estudante Paulo Braga pelas vielas sujas e sombrias da cidade do Rio de Janeiro. Relacionando-se sobretudo com prostitutas e cafetinas, o protagonista acompanha a assustadora transformação do sexo em moléstia e morte, a ruidosa destruição física e psíquica das mulheres. Martins consegue fugir de estereótipos e suas personagens são marcadas por pungente individualidade, numa prosa que alia bom humor à uma excelência lingüística.
No segundo livro, suas crônicas são povoadas por personagens como Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade e Odylo Costa, filho, aos quais se juntam artistas e boêmios anônimos. Através das memórias do escritor vai-se desenhando ao leitor a história da Lapa, de sua glória à sua decadência. “O seu assunto específico não é a minha autobiografia”, diria autor sobre o livro. “É a Lapa”.
Pela escrita de Lapa, Martins foi comparado a Érico Veríssimo, Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Os dois livros, apesar de suas fortes diferenças, completamentam-se na descrição do famoso bairro boêmio e da excelente descrição dos tipos que o freqüentavam.
Segundo Luiz Fernando Vianna, em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, o “autor nunca deixou de ser severo em relação a ‘Lapa’ – a despeito dos elogios de Carlos Drummond de Andrade, Antonio Candido e tantos outros. Já na primeira edição, publicou uma ‘nota absolutamente necessária’, na qual praticamente se desculpava pela ‘brutalidade da linguagem’, pela ‘amarga revolta’”.
Vianna comentando Noturno da Lapa, pontua que seus capítulos “são memórias das noitadas vividas com Rubem Braga, Moacir Werneck de Castro, Lúcio Rangel, Carlos Lacerda – que ainda era socialista – e muitos outros que encorparam nos anos 1930 o mito da Lapa como lugar de moral e costumes próprios, um enclave dentro da cidade. Aqueles se misturaram à geração dos anos 1920 (de intelectuais como Ribeiro Couto, Jayme Ovalle, Villa-Lobos, Sérgio Buarque de Holanda etc.), para logo sucedê-la. ‘A Lapa era um jardim de espantos’, resume o autor, contente. Quando visita a região em 1940, já vai ‘a uma cidade morta ou a um cemitério de ruínas’. O Estado Novo a sufocara. Ficaram as lembranças”.
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Trecho:
Cinco horas da manhã, depois de uma noite perdida nas pensões do amor barato. Amanhecia. Eu ia amolado da vida, com o gosto de um bruto começo de ressaca me estragando a madrugada.
Num botequim da rua da Lapa, onde parei para comer um sanduíche, uma mulher muito estrompa ceava com quatro sujeitos bêbados. O mais moço, louro e pálido, ela acariciava sonolenta, dando comidinha na boquinha dele, “Coma, meu benzinho, coma este pedacinho de omelete”, com uma voz que aumentava loucamente o meu enjoo matinal.
Saí. O céu clareava por cima das casas. As lâmpadas das ruas se tinham apagado, mas alguns botequins estavam abertos, iluminados, com a freguesia da madrugada, mulheres de volta dos cabarés, gigolôs, homens equívocos, gordas donas de pensões acompanhadas dos rapazinhos que levam o cobre.
Peguei a caminhar um pouco ao acaso, começando a querer vomitar as delícias e os sonhos da noite… Subi a rua Joaquim Silva, pra fazer tempo. Estava escuro ainda. No começo, não vi ninguém, mas depois notei uma mulher sozinha no meio da rua. Percebi logo que era velha e gorda. Fui andando sem ligar, mas, ao passar perto da mulher, ela me agarrou.
Autor: Luis Martins
Editora: José Olympio
Preço: R$ 52,00 (464 págs.)