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“Colocar a violência em primeiro plano quase inevitavelmente serve para obscurecer as questões que estão no centro das lutas por justiça” – Angela Davis.
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A liberdade é uma luta constante, de Angela Davis, acaba de ser lançado no Brasil pela Boitempo. O livro reúne três entrevistas, concedidas por Davis ao ativista Frank Barat – responsável pela organização do livro e pelo texto introdutório à edição – ao longo de 2014, além de sete discursos, proferidos pela militante, entre 2013 e 2015. Ao longo dos textos, Angela Davis aborda diversas formas de submissão humana e, como pontua a escritora Conceição Evaristo, no texto de orelha, “nos traz novas orientações para pensar a luta contra o racismo, a machismo, o sexismo e outras formas de subjugação existentes em nossa sociedade”.
Ativista, professora, ícone do movimento Black Power, autora de livros já clássicos, como Mulheres, raça e classe [Boitempo, 2016], Davis discute Ferguson – em 2014, Michael Brown, de 18 anos, foi baleado por um policial na cidade de Ferguson, no estado do Missouri, dos Estados Unidos, caso que revelou um padrão racista na polícia local -, a situação da Palestina, o abolicionismo prisional, iluminando as conexões entre as lutas contra a violência estatal e a opressão ao longo da história e ao redor do mundo. A liberdade não só é uma luta constante, como uma luta global.
Em tempos dragados pela lógica neoliberal, em que mais parece que a liberdade é um luto constante, os textos de Angela Davis são inspiradores. A intelectual, que permanece entusiasta da liberdade da população pobre e trabalhadora, mostra que, observada sob um ângulo mais amplo, a história dos movimentos de libertação prova que forças aparentemente indestrutíveis podem ser facilmente destroçadas. Em tempos de execução de uma ativista, mulher e negra, no Brasil, a tradução e publicação desse livro grita a importância da constituição de bases essenciais para a luta contra as forças máximas do sistema corporativo e para a personificação coletiva da resistência.
Segundo Conceição Evaristo, a obra que agora chega ao leitor brasileiro insiste com veemência em aspectos “primordiais para fortalecer nossas ações: a compreensão de que nosso comprometimento deve se estender também às outras e novas lutas reivindicatórias de direito à liberdade e à vida (nosso ativismo nos pede uma compreensão, uma visão global sobre a luta afirmativa empreendida por todas as identidades agredidas nos mais diferentes espaços geográficos); e uma outra reflexão tão necessária à nossa militância atual, em qualquer campo de atuação, de que nossas ações devem ser incorporadas e compreendidas no coletivo”.
Angela Davis pontua a construção de um movimento coletivo, em plena sociedade promotora do egoísmo e individualismo, já na primeira entrevista do volume. Diz ela: “Desde a ascensão do capitalismo global e das ideologias associadas ao neoliberalismo, tornou-se particularmente importante identificar os perigos do individualismo. As lutas progressistas – centradas no racismo, na repressão, na pobreza ou em outras questões – estão fadadas ao fracasso se não tentarem desenvolver uma consciência sobre a insidiosa promoção do individualismo capitalista. Mesmo que Nelson Mandela tenha sempre insistido que suas realizações foram coletivas, conquistadas também por homens e mulheres que o acompanhavam, a mídia tentou alçá-lo a herói. Um processo similar tentou dissociar Martin Luther King Jr. do imenso número de mulheres e homens que constituíram o verdadeiro cerne do movimento pela liberdade nos Estados Unidos em meados do século XX. É fundamental resistir à representação da história como o trabalho de indivíduos heroicos, de maneira que as pessoas reconheçam hoje sua potencial agência como parte de uma comunidade de luta sempre em expansão”.
Acerca do caso do assassinato de Michael Brown, Davis afirma que Ferguson nos lembra da importância de pensar o racismo e o encarceramento em massa em um contexto global: “O que observamos na reação da polícia à resistência que irrompeu espontaneamente como consequência do homicídio de Michael Brown foi uma resposta armada que revelou até que ponto as forças policiais locais têm sido equipadas com armamentos militares, tecnologia militar, treinamentos militares. A militarização da polícia nos leva a pensar em Israel e na militarização da polícia israelense – se tivessem sido mostradas apenas as imagens da polícia, e não as dos manifestantes, seria possível supor que Ferguson era Gaza. Acho que é importante reconhecer em que medida, por causa do advento da guerra contra o terror, as forças policiais em todos os Estados Unidos têm sido guarnecidas com meios para, alegadamente, ‘combater o terror’”. Davis pontua que o uso da violência estatal contra a população negra e as minorias étnicas tem origem na colonização e na escravidão. Segundo ela, “o movimento pelos direitos civis foi muito bem-sucedido naquilo que conquistou: a erradicação do racismo nas leis e a dissolução do aparato de segregação. Foi algo que aconteceu e cuja importância não devemos subestimar. O problema é que muitas vezes se presume que a erradicação do do aparato legal seja equivalente à abolição do racismo. Mas o racismo persiste em uma estrutura que é muito mais extensa, mais ampla, do que a estrutura legal. O racismo econômico continua a existir. O racismo pode ser encontrado em todos os níveis de todas as grandes instituições – inclusive nas Forças Armadas, no sistema de assistência à saúde e na polícia”.
A respeito da interseccionalidade, conceito que tornou-se notório com Davis e que embasa as análises e reflexões sobre as interconexões entre raça, classe, gênero, sexualidade, a autora afirma que é um conceito perpassado por uma valiosa história de lutas: “Uma história de diálogos entre ativistas no interior do movimento, entre intelectuais da academia e entre esses dois setores”. Há uma percepção crescente de que não é possível separar as questões de raça das questões de classe e das questões de gênero e, de maneira análoga, Davis insiste também na importância de interseccionalidade dos movimentos: “No movimento de abolicionismo prisional, temos tentado encontrar maneiras de falar sobre a Palestina, de modo que as pessoas interessadas em uma campanha pelo desmantelamento das prisões no Estados Unidos também reflitam sobre a necessidade de dar um fim à ocupação da Palestina. Não pode ser uma reflexão posterior. Tem que ser parte da análise em curso”.
Sobre o abolicionismo prisional – abolição do altamente lucrativo complexo industrial-prisional –, Angela Davis pontua que o espaço institucional da prisão, mais que material e objetivo, é simbólico e serve como um local de depósito de pessoas que representam problemas sociais: “Nós não podemos pensar apenas sobre crime e punição. Não podemos considerar a prisão somente como um local de punição para quem cometeu um crime. Temos de avaliar o quadro mais amplo. Isso significa perguntar: por que há um número tão desproporcional de pessoas negras e de minorias étnicas na prisão? Temos de falar sobre racismo. O abolicionismo prisional significa tentar abolir o racismo. Por que há um analfabetismo tão grande? Por que há tantas pessoas analfabetas na prisão? Isso significa que temos de prestar atenção no sistema educacional. […] Em certo sentido, o que estamos defendendo é que a luta pelo abolicionismo prisional segue a luta pela abolição de escravatura do século XIX; a luta por uma democracia abolicionista ambiciona criar as instituições que realmente viabilizarão uma sociedade democrática”.
A respeito do racismo, a autora afirma ser um fenômeno muito complexo: “Existem elementos estruturais bastante importantes do racismo e, em geral, esses elementos não são levados em consideração quando se discute seu fim ou sua contestação. Há também o impacto na psique, e é aí que entra a persistência dos estereótipos. Os modos como, ao longo de um período de décadas e séculos, as pessoas negras vêm sendo desumanizadas, ou seja, representadas como menos do que humanas e, portanto, o caráter político da maneira como a população negra é retratada por meio da mídia, por meio de outras formas de comunicação, que entra em jogo nas interações sociais, tem igualado pessoas negras a criminosas. Então, não é difícil entender como esses estereótipos persistem por tanto tempo”. Para Davis, existe a base para um movimento, que ainda não foi organizado; diz ela: “Eu acredito que os movimentos precisam de tempo para se desenvolver e amadurecer. Eles não acontecem espontaneamente. Surgem como resultado da organização e do trabalho pesado que, na maioria das vezes, acontecem nos bastidores. Eu diria que, ao longo das duas últimas décadas, têm acontecido mobilizações constantes contra a violência policial, o racismo, a violência policial, o racismo, a violência policial racista, as prisões, o complexo industrial-prisional, e acho que os protestos frequentes hoje têm muito a ver com essa organização. Eles são reflexo do fato de que, em várias comunidades, a consciência política é muito mais elevada do que as pessoas pensam. Há um entendimento público da relação entre a violência policial racista e questões sistêmicas. O complexo industrial-prisional tem relação com o uso, recentemente revelado, de prisões secretas e de tortura pela CIA. Assim, acho que temos a base para um movimento”.
Acerca do feminismo, Angela Davis afirma a importância de nos livrarmos “do pensamento identitário estreito se quisermos encorajar as pessoas progressistas a abraçar tais lutas como se fossem delas próprias. Com relação às lutas feministas, os homens terão de fazer muito do trabalho importante. Gosto bastante de falar sobre o feminismo não como algo que adere aos corpos, não como algo enraizado em corpos marcados pelo gênero, mas como uma abordagem – como uma forma de interpretação conceitual, como uma metodologia, como um guia para estratégias de luta. Isso significa que o feminismo não pertence a ninguém em particular”. Para a autora, não só o feminismo, mas quaisquer movimentos libertários, tornam-se mais poderosos quando conseguem afetar a visão de pessoas que não necessariamente associem-se a eles.
Segundo Davis, o “feminismo envolve muito mais do que a igualdade de gênero. E envolve muito mais do que gênero. O feminismo deve envolver a consciência em relação ao capitalismo – quer dizer, o feminismo a que me associo. E há múltiplos feminismos, certo? Ele deve devolver uma consciência em relação ao capitalismo, às pós-colonialidades, às capacidades físicas, a mais gêneros do que jamais imaginamos, a mais sexualidades do que pensamos poder nomear. O feminismo não nos ajudou apenas a reconhecer uma série de conexões entre discursos, instituições, identidades e ideologias que tendemos a examinar separadamente. Ele também nos ajudou a desenvolver estratégias epistemológicas e de organização que nos levam além das categorias ‘mulher’ e ‘gênero’. As metodologias feministas nos impelem a explorar conexões que nem sempre são aparentes. E nos impulsionam a explorar contradições e descobrir o que há de produtivo nelas. O feminismo insiste em métodos de pensamento e de ação que nos encorajam a uma reflexão que une coisas que parecem ser separadas e que desagrega coisas que parecem estar naturalmente unidas”. Há, para a ativista, “uma dimensão filosófica feministas nas teorias e nas práticas abolicionistas. O pessoal é político. Há uma profunda força relacional que liga as lutas contra as instituições e as lutas para reinventar nossa vida pessoal e nos remodelarmos”.
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.Trecho.
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A história da própria instituição prisão é repleta de reformas. Foucault mostra isso. A reforma não vem após o advento da prisão, ela acompanha o surgimento da prisão. Dessa forma, desde sempre a reforma prisional só criou prisões melhores. No processo de criar prisões melhores, mais pessoas são colocadas sob a vigilância das redes correcionais e de aplicação de lei”; no entanto, o espaço da cadeia ou da prisão não é apenas material e objetivo, mas também ideológico e psíquico. Internalizamos essa noção de um lugar onde colocar as pessoas más. Esse é precisamente um dos motivos pelos quais temos de imaginar o movimento abolicionista abordando também tais questões ideológicas e psíquicas. Não apenas o processo de remoção das instituições ou das instalações físicas.
Por que aquela pessoa é má? A prisão impede essa discussão. Qual é a natureza dessa maldade? O que a pessoa fez? Por que a pessoa fez aquilo? Se pensarmos a respeito de alguém que cometeu atos de violência, o que permitiu aquele tipo de violência? Por que os homens se envolvem em comportamentos violentos contra as mulheres? A própria existência das prisões impossibilita esse tipo de discussão, que é necessário para que imaginemos a possibilidade de erradicar tais condutas.
Basta mandar essas pessoas para a prisão. Basta continuar a mandá-las para a prisão. E então, óbvio, na prisão elas se veem dentro de uma instituição violenta e que reproduz violência.
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A LIBERDADE É UMA LUTA CONSTANTE
Autor: Angela Davis
Editora: Boitempo
(140 págs.)