A poeta Ana Cristina César teve uma vida breve. Foi, ainda assim, uma das mais importantes representantes da poesia marginal que florescia na década de 1970. Deixou uma obra híbrida de prosa e poesia, equilibrada entre o ficcional e o autobiográfico. Apesar de identificada à poesia marginal, sua lírica é independente, dessacralizante, espontânea: Ana Cristina César reverte os procedimentos comuns ao grupo e critica-os a partir de seu próprio âmago. Seu espaço literário simula o discurso confessional a partir de falsas correspondências e diários, alcança o tom coloquial parodiando textos da tradição literária. Além de poeta, foi também ensaísta e tradutora. Desde a vida universitária, participou ativamente da cena cultural carioca e do movimento da poesia marginal, conviveu com poetas como Cacaso (1944 – 1987) e intelectuais como Heloísa Buarque de Holanda (1939). Colaborou em diversas publicações, com destaque para Beijo, importante periódico de cultura, com sete números impressos, cujo processo ela acompanhou desde a criação. Suicidou-se aos trinta e um anos – atirou-se pela janela do apartamento dos pais, no oitavo andar de um edifício da rua Tonelero, em Copacabana. Sua obra estava há décadas fora de catálogo e, agora adquirida pela Companhia das Letras, volta a ser publicada, num volume único que compila desde os volumes independentes do começo da carreira aos livros póstumos: Poética reúne Cenas de abril, Correspondência completa, Luvas de pelica, A teus pés, Inéditos e dispersos, Antigos e soltos, uma seção de poemas inéditos. A edição ainda conta com texto de posfácio escrito pela professora Viviana Bosi e um farto apêndice. A curadoria editorial e a apresentação couberam ao também poeta, grande amigo e depositário da obra de Ana Cristina, Armando Freitas Filho.
Segundo Maria Lucia de Barros Camargo, professora de Teoria Literária da UFSC – autora de Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar –, em artigo publicado no jornal O Globo:“Talvez não possamos ainda avaliar com clareza todos os fatores que atuam nessa grande repercussão: como medir os efeitos da morte trágica em 1983, associada ao cuidado editorial da publicação póstuma (com destaque para a onipresente fotobiografia), na construção dessa personagem com ares de mito, a linda, jovem e loira poeta-suicida Ana Cristina, que muitas vezes é lida a partir de sinais autobiográficos ou da sensual feminilidade que sua obra exala? Mas os leitores de Ana C. não se deixam seduzir apenas pela tragédia pessoal, e sim pela palavra ambígua, pelo ar de intimidade misteriosa, pelos segredos apenas aparentemente confessados, ou pelas confissões plenas de dissimulação”. Maria Lúcia analisa: “Leio na opção pelo olhar estetizante uma síntese da paradoxal poética de Ana C., que transfigura a noção de real e afirma, em tom irônico, a morte do eu, ao mesmo tempo em que o eu parece se exacerbar”. Segundo Heloisa Buarque de Hollanda,“Entre Ana e o texto, entre Ana e a vida, havia a elipse, o prazer do pacto secreto com seu possível interlocutor. A isso ela chamava ‘páthos feminino’. Disso, ela fez seguramente a melhor e a mais original literatura produzida dos anos 1970”.
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Fama e fortuna
Assinei meu nome tantas vezes
e agora viro manchete de jornal.
Corpo dói – linha nevrálgica via
coração. Os vizinhos abaixo
imploram minha expulsão imediata.
Não ouviram o frenesi pianíssimo da chuva
nem a primeira história mesmo de terror:
no Madame Tussaud o assassino esculpia
as vítimas em cera. Virou manchete.
Eu guio um carro. Olho a baía ao longe,
na bruma de neon, e penso em Haia,
Hamburgo, Dover, âncoras levantadas
em Lisboa. Não cheguei ao mundo novo.
Nada é nacional. Desço no meu salto,
dói a culpa intrusa: ter roubado
teu direito de sofrer. Roubei tua
surdina, me joguei ao mar,
estou fazendo água. Dá o bote.
– Ana Cristina César.
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Autor: Ana Cristina César
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 33,60 (504 págs.)