Maria Gabriela Llansol (Lisboa, 24 de Novembro de 1931 – Sintra, 3 de Março de 2008) é conhecida como autora de uma obra inclassificável: seus livros transitam entre gêneros e esfarelam suas fronteiras, articulando e reunindo diário e romance, poesia e ensaio.
Sua escrita é enigmática e repleta de fulgor. Há uma estranheza e uma complexidade que envolvem toda sua obra.
Segundo Maria João Cantinho, em artigo publicado pela revista de estudos literários da Universidade de Madrid, Espéculo, o texto de Maria Gabriela Llansol abandona a literatura “para mergulhar no abismo – já não da literatura – mas da própria escrita, no que ela contém de perigosa implosão. E é nesse limiar de perigo, entre o exprimível e o inexprimível, que se sustenta o texto llansoliano”. De acordo com a crítica portuguesa: “Quando é pensável a leitura crítica sobre a obra, imediatamente vem à memória o noli me legere de Blanchot[1]. Ressalte-se o precário do texto, a zona obscura em que ele se encerra, guardando em si o sentido. A resistência abre-se nessa incandescência da imagem; se, por um lado, ela (imagem-escrita) apela ao jogo das faculdades, para usar o termo kantiano; por outro, essa imagem fecha-se sobre si própria, transformando-se num interdito”.
Último dos livros da trilogia “Geografia de Rebeldes”, Na casa de julho e agosto, publicado originalmente em 1984, é, como afirma João Barrento no posfácio, o “livro do desencontro entre duas paisagens na história da Europa” e também o “livro das relações, e um roteiro de viagens – entre a Europa do norte e o litoral português”.
Denso, é feito de maneira fragmentária, narrado por personagens históricas – figuras religiosas, filósofos, artistas – separadas por séculos, de maneira que o texto cria uma complexa trama de exílios e viagens ao redor do mundo ao largo de rios: o Tejo, o Eufrates, o Tigre. Os rios, uma vez que interligam vários países, são veios de partilha de culturas. Assim, são imagens da emancipação talvez da própria autora, que viveu em longo exílio, entre as décadas de 1960 e 80.
Na entrevista que deu ao jornal Público em 1995, posteriormente publicada integralmente na 2ª edição do livro Na casa de julho e agosto em 2003, Llansol menciona o termo “espaço Llansol”: “Eu, Maria Gabriela Llansol, nunca disse que desejava ser convidada pelos Bach. A narradora, que dá pelo nome de o espaço Llansol, é que procura provocar uma sobreimpressão entre esse espaço e o espaço da casa dos Bach, por ter indícios claros de que essa sobreimpressão provocará efeitos fulgurantes”.
Primeiro livro da referida trilogia, O livro das comunidades foi publicado originalmente em 1977. Lançado em 2014 no Brasil pela editora 7 Letras, este é considerado o “livro-fonte“ da escrita singular da autora portuguesa.
Aqui Maria Gabriela Llansol inaugura a série de Figuras – Eckart, S. João Da Cruz, Müntzer, Ana de Jesus –, cujos nomes designam uma determinada época da Europa; nomes que serão repetidos em diversos lugares e tempos nos outros dois volumes da “Geografia de Rebeldes”.
Em O livro das comunidades o leitor se depara com o universo próprio llansoniano, inquieto, fecundo. Segundo Celina Martins, conforme escreveu em uma bela resenha, o livro “se assume como ruínas de narrativa fabular, canto místico, cinzas de poemas, sinais de cantigas de amigo, vestígios de viagens iniciáticas no emaranhar do fato e da ficção que auto-geram o inominável e o inefável a palpitar, ainda hoje, na nervura dos nossos dedos”. Para a crítica: “Tudo principiou em Lovaina, Jodoigne e Herbais – espaços de exílio interior de Llansol – que despoletaram a escrita através do perscrutar de uma situação limite de não-fala de uma criança autista. Pouco importa se desconhecemos a pergunta da menina. O primordial é a sintonia de Llansol com o corpo impregnado de memórias de futuro e passado retroactivamente umbilicados n’O Livro das Comunidades de forma a entranhar, copular e fecundar o lugar da fissura num encadeamento descontínuo e peculiar de intertextualidades estilhaçadas em contraponto com a estética da verosimilhança realista. A indecibilidade genológica anima o leitor a remar em busca de afluentes de sentido, entre a bruma e o inusitado, que o conduzem ao interior da placenta combinatória do texto”.
Trata-se, o livro, segundo ela, de uma “orgânica fragmentária de vinte e seis lugares que o estruturam, ciente de que o enigma se encontra ora incrustado num nó de nuvem, ora disseminado no espelho oval e no reverso do retrato num jogo de espelhamentos metaficcional. Basta repousar o olhar mental sobre a tessitura para tatear índices do anel: metáfora recorrente do texto llansoliano. O Livro das Comunidades é o umbral da transtextualidade: cada célula do tecido engravida novas línguas de fogo, que rondam a casa do diverso por construir. Trata-se de uma nova casa-útero em que as hierarquias sociais, a diferença de espécies e sexos se anulam”.
.Nota. A editora 7 Letras também publicou no Brasil o segundo volume da trilogia, A restante vida, publicado originalmente em 1983, sobre o qual não nos debruçaremos aqui somente pelo reduzido espaço – de acordo com José Augusto Mourão, responsável pelo posfácio, é “um tratado sobre a escrita e a leitura e a servidão – sobre a pobreza e a sobrevivência; sobre o humano e o pré-humano”.
De difícil classificação, Um falcão no punho é um diário, é também laboratório, é também uma peça literária em fuga.
Publicado originalmente em 1985, o livro apresenta considerações da autora sobre o ato de escrever. Suas reflexões perpassam uma dialética contemplação interior e exterior, ou seja, a transformação da cultura e da natureza em escrita. O diário pessoal torna-se um só com mini enredos por ele permeados, por entre personagens simbólicos, como Bach e Pessoa.
De acordo com Maria João Cantinho, no artigo supracitado, a obra de Llansol encerra-se em uma zona obscura, guardando em si seu sentido; isso, porém, “não é um impeditivo da leitura, mas confirma, antes, uma exaltação dessa tarefa da participação na compreensão e decifração (caso seja possível falar nestes termos)”. Cantinho comenta uma observação recorrente na crítica em relação à escrita de Llansol, “o reconhecimento de uma ‘escrita laboratório’ que M.G.L. reconhece no seu diário, Um Falcão no Punho, p. 60: ‘Musil e eu interessamo-nos pelo pensamento que se desenvolve e suspende na escrita; a literatura como comércio, abandonámo-la neste cruzar de prados onde nos encontrámos por uma circunstância fortuita […] Liga-nos a aquiescência de que almejar com a escrita não é o mesmo que esbanjar no vazio a palavra’”. De acordo com a comentadora portuguesa, “a palavra não é, de modo algum, esbanjada, ou objeto de um jogo fortuito, mas é, se é que se pode defini-la assim, ‘reconvertida’ pela sua incorporação numa nova ordem de significação. E o perigo da escrita está nessa tarefa de lutar contra a ordem de significação convencional (e meramente comunicacional da narrativa), integrando-a numa nova constelação ou ordem. O efeito que daí resulta é, justamente, essa estranheza e ilegibilidade a que já se aludiu anteriormente. A escrita não se inscreve num horizonte pré-determinado de sentido, mas abre o espaço fundante, o Lugar”.
Em uma das passagens do diário, Llansol diz: “Como ser civil conheço o presente, o passado, e o futuro. Mas como escritor tenho um olhar que toca sobretudo o espaço, livre de tempo. Nele não há poder, que é sempre o poder de escolher e de chegar à morte”.
Os outros volumes dos diários de Llansol – Finita [diário II] e Inquérito às quatro confidências [diário III] – também foram recentemente publicados no Brasil, também pela editora Autêntica.
O começo de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos.
Mas breve é o começo de um livro – mantém o começo perseguindo.
Quando este se prolonga, um livro seguinte se inicia.
Basta esperar que a decisão de intimidade se pronuncie.
Vou chamar-lhe fio ___ linha, confiança, crédito, tecido.
Publicado originalmente em 2003, O começo de um livro é precioso é um livro de ideias e motivos que se entrelaçam uns aos outros, retomando figuras, fragmentos, palavras ou expressões, espaços escriturais. Nas palavras precisas de Silvina Lopes [Teoria da des-possessão. Lisboa: Black Sun, 1988], “a unidade livro é imagem aparente: não há livro ou livros, há uma escrita que desliza na corrente dos textos e nela se recorta como ser em metamorfose”. Assim ocorre com este livro de Llansol desde o título, retomado na primeira linha da primeira página, provocando uma presença literária prolongada e que gesta em si outros textos, como o poema o avisa.
Seu texto dilui as fronteiras entre prosa e poesia, transformando-as em contrapontos de tonalidade poética em meio a uma discursividade narrativa.
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Como a chuva não cessasse de cair em caudais,
Tiras de tinta começaram a aparecer na fotografia
O tecto da chuva rompera o abrigo da sua alma
E o verde circulava a deriva rompendo as plantas.
Elvira deixara cair seus olhos de objectiva nas
Folhas verdes. Verificava que era sobre elas e como
Elas que sempre olhara a natureza. Ver o real
Em folhas era amá-lo ininterruptamente. Essa
Contiguidade acabara por compor uma rede
Que tinha tanto de próximo como de diferente,
E a chuva não era chuva, transparecia. Eis, pensou.
Por que chove na fotografia, por que chove
Em correntes sobre as folhas?
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Último livro publicado em vida por Maria Gabriela Llansol, em 2007, Os cantores de leitura é belíssimo. Considerada uma obra que consegue expressar a escrita em estado puro: seus silêncios cantam a leitura: “Não queremos que eles se distingam pela aprendizagem da nossa poesia lírica. Estamos a criar ruídos que sejam uma contra-música”.
Conforme definiu Pedro Eiras, em artigo escrito para a publicação Recensões Críticas, da Fundação Calouste Gulbenkian, o livro surgiu “numa leitura tingida pelo biografema, como um último livro. […] Último livro, e contudo, como sempre, primeiro livro, no sentido em que Llansol escreve uma iniciação à leitura. Impõe-se uma memória de topoi de outros livros: a morte, assinalada por vários testamentos (o inventário dos bens de Johann Sebastian Bach, desde Lisboaleipzig, de 1994, a este Os Cantores de Leitura, p. 44), a restante vida das figuras para lá da morte histórica, numa comunidade de diversos, mas também a aprendizagem da leitura […]. Ler Llansol implica lembrar leituras anteriores, se cada livro é parte de um todo maior que se revisita a si mesmo, por ordem cronológica inversa. Cada novo livro, último, implica um recomeço, tábua rasa, primeira, que inicie a obra. A questão da morte e da sobrevivência enquanto leitura, assim, não é um acidente biográfico, mas o graphos de uma vida necessária. Um livro de despedida começa por acolher”.
Segundo o crítico, a “própria escrita de Os Cantores de Leitura procura uma ordem, more geometrico, que homenageia a Ética de Espinosa. Mas, em vez de Proposições, Demonstrações, Corolários, Escólios, há Partículas, seus duplos, seus contextos, substituindo-se a verticalidade inferencial da Ética por uma horizontalidade da deriva aberta ao acolhimento, ao fragmento que adia todo o sistema. Na partícula intitulada, precisamente, ‘Geometria’, lê-se: ‘A minha voz não me pertence. É a diferença entre o débito e o crédito. / E dou de frente com a linha recta perpendicular ao meu amor’”.
As edições de Lllansol no Brasil privilegiam sua produção até a década de 1990. Os diários, originalmente publicados entre 1985 e 1996, foram lançados no Brasil pela editora Autêntica entre 2011 e 2014. Dentre os títulos da autora publicados pela 7 Letras, não comentamos, novamente, pelo pouco espaço, o livro Um beijo dado mais tarde, romance intimista, em grande parte autobiográfico, considerado um projeto estético ousado e revolucionário [cf. comentário de Eloísa Porto Corrêa].
Na “Nota biográfica”, incluída na edição brasileira de Um falcão no punho lê-se: “Na literatura portuguesa contemporânea, a obra de Maria Gabriela Llansol destaca-se com um perfil avesso à representação dominante no romance e a todas as formas de ortodoxia. Escrito sob o signo da ruptura, o seu texto estrutura-se de forma não linear e não sequencial, gerando frequentemente fulgurações, ou ‘cenas-fulgor’, que traduzem a descontinuidade temporal, a preferência pelo fragmentário e a experiência da metamorfose e da vibração do Vivo originalmente postas em linguagem”. Sua escrita acontece “nas margens da língua […] e fora do universo institucional e mediático da ‘literatura’”.
Llansol foi uma das autoras mais originais das letras portuguesas. Sua linguagem debate-se com a própria linguagem, processo autofágico que problematiza a essência do ser e, ao mesmo tempo, também, a essência da palavra.
Segundo o professor e filólogo português Eduardo Lourenço, Llansol será, depois de Fernando Pessoa, “o próximo grande mito literário da literatura portuguesa”: “Nunca será uma autora fácil e consensual. É uma espécie de fenómeno misterioso. Alguém vindo de uma outra espécie de planeta. Quem a encontra é difícil não ficar fascinado por essa escrita”.
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Nota.
[1] Blanchot diz “Noli me legere”, evocando o “Noli me tangere” do Cristo ressuscitado, que o diz à Madalena, que estende as mãos em sua direção, querendo tocar-lhe o corpo. Não é possível tocar o corpo do pai, como explica a pesquisadora Lucia Castello Branco, da UFMG, em interessante artigo, “não exatamente porque esse corpo seja interdito, mas porque é impossível tocar o que está, perpetuamente, a morrer. E é essa morte o que o Cristo ressuscitado encarna: sua ressurreição encarna menos a presença do morto que torna a viver que a apresentação do vivo que encena, reiteradamente, o estar a morrer. Da mesma forma, para o escritor é impossível ler-se: ‘Noli me legere’. A obra está sempre aquém ou além daquele que escreve. Impossível tocá-la. Assim, o escritor vai à obra, em busca de tocá-la, mas dela retorna com apenas um livro nas mãos, um amontoado de palavras estéreis e inúteis, como observa Blanchot. E a Literatura perdura, em seu perviver, como um eterno estar a morrer no texto”. Castello Branco evoca as palavras de Llansol, em Um beijo dado mais tarde, “Ler. Nascer. Morrer. Aprender a viver com a leitura que morre. Ler a língua na estátua de um outro, esperar que o mesmo momento se repita. Não o deixar morrer. Estabelecer um elo entre a lei e a leitura, e querer a escrita”.