“Era simplesmente instalar-se na convicção ou
na superstição de que não existe o que se diz.”
O título Coração tão branco do livro do espanhol Javier Marías é uma alusão a um verso de Shakespeare, um diálogo em Macbeth:
My hands are of your colour, but I shame to wear a heart so white
[Minhas mãos são de tua cor; mas me envergonha trazer um coração tão branco].
A alusão desenvolve-se em breve comentário num dos decorreres do fluxo de consciência do protagonista narrador, um tradutor. Ele percorre mentalmente este e alguns versos circundantes, reconstruindo a cena e a história, interpretando-os, revirando os sentidos por trás de suas palavras, à maneira de um cacoete profissional, por impulso de pensar suas possíveis traduções.
Não é só que Lady Macbeth induza Macbeth, é que sobretudo ela está a par de que se assassinou desde o momento seguinte em que se assassinou, ouviu dos próprios lábios do marido “I have done the deed” quando ele volta, “Fiz o fato” ou “Cometi o ato”, embora a palavra “deed” se entenda hoje em dia mais como “façanha”. Ela ouve a confissão desse ato ou fato ou façanha, e o que a torna verdadeira cúmplice não é tê-lo instigado, nem esmo ter preparado o cenário antes nem ter colaborado depois, ter visitado o cadáver recente e o lugar do crime para apontar os serviçais como culpados, mas saber desse ato e de sua consumação. (…) “Não te percas tão abatido em teus pensamentos”. Esta última frase ela lhe diz depois de ter saído decidida e voltado de untar os rostos dos serviçais com o sangue do morto (“Se sangra…”) para acusá-los: “Minhas mãos são de tua cor”, anuncia a Macbeth; “mas me envergonha trazer um coração tão branco”, como se tentasse contagiá-lo com sua despreocupação em troca de ela se contagiar com o sangue derramado de Duncan, a não ser que “branco” queira dizer aqui “pálido e temeroso” ou “acovardado”. (…) manchar as mãos com o sangue é um jogo, um fingimento, um falso entendimento seu com o que mata, porque não se pode matar duas vezes, e já está feito o fato: “I have done the deed”, e nunca há dúvida de quem é “eu”.
No mosaico de personagens que compõe o livro, esse é o tema a ser variado, pigmento principal que ganha densidade psicológica conforme coloca questões de culpa, conivência e cumplicidade, por um lado, e de máscaras, esconderijos e segredos, por outro, até que impliquem-se necessariamente. O arrependimento tem muito em comum com a inocência e com a covardia; ele é, desta, irmão; a inocência, é sua meia-irmã. Compartilham todos um modo de ser, branco: alvejado, limpo, ou acovardado, pálido, temeroso. Todas as cores ao mesmo tempo, ou talvez sua ausência, desbotada pelo tempo. Distâncias siamesas das ambivalências.
O autor Javier Marías é considerado um dos melhores romancistas contemporâneos e sua prosa em Coração tão branco é interessante e rica. O fluxo de consciência do personagem desenvolve-se com a sinceridade própria aos pensamentos, enrodilhando-se e demorando-se em detalhes. É através dos detalhes que ele costura a narrativa e a humaniza. Detalhes como aqueles que normalmente vemos sem nem reparar, que nos perpassam quando na verdade pensamos em outra coisa. Eles fazem parte da cena de maneira latente apesar de serem colocados em primeiro plano, como por exemplo a comida meio mastigada na boca de um pai, na primeira página, descrita em primeiro plano, apesar de ser um detalhe. A cena retumba uma humanidade trágica graças a este detalhe carnal, a comida meio mastigada ainda na boca, de um pai que encontra o corpo de sua filha, há instantes suicidada com um tiro, em sua casa, no banheiro, no meio do almoço.
Outra consequência do encadeamento de detalhes é a oralidade da prosa. Pois, enroscando-se nos detalhes, e nos detalhes dos detalhes – em memórias, em associações de lembranças, de semelhanças, em interpretações, durante a narrativa de acontecimentos presentes –, a prosa parece ganhar a liberdade de uma conversa. Os detalhes relacionam-se todos, compondo o livro através de ramificações de relações, de analogias, de anáforas. Isso ocorre inclusive na forma em que se desenvolve o texto de Javier, composto por frases muito longas, virguladas, entre constantes comentários do narrador. As vírgulas são tão expressivas, mesmo quando de sua ausência: não há vírgulas nas enumerações ou gradações de elementos ou idéias, que são, nesses particulares momentos do texto, apenas enfileirados, sem pausas, numa oralidade então mais passional, que dá ao texto uma franqueza caótica e um aspecto um tanto cômico.
“Às vezes tenho a sensação de que nada do que acontece acontece, porque nada acontece sem interrupção, nada perdura nem persevera nem se recorda incessantemente e até a mais monótona e rotineira das existências vai se anulando e negando a si mesma em sua aparente repetição até que nada seja nada e ninguém seja ninguém que tenha sido antes, e a frágil roda do mundo é empurrada por desmemoriados que ouvem e vêem e sabem o que não se diz nem sucede nem é cognoscível nem comprovável”.
O texto é fluído, ainda que a história vá e volte no tempo –acompanhando o pensamento permanente do narrador. Uma espécie de fluxo de consciência que é interrompido o tempo todo pelos acontecimentos presentes, digressões que resultam numa espécie de rapsódia. A história começa e termina no mesmo momento da vida do protagonista, de modo que, no limite, o livro todo é uma grande digressão, uma renda de parênteses de parênteses. Seu tempo é o tempo da memória, desenovela-se.
“(…) totalmente impossível pensar no futuro, que é um dos maiores prazeres concebíveis para qualquer pessoa se não a diária salvação de todos: pensar vagamente, errar com o pensamento posto no que há de vir ou pode vir, perguntar-se sem muita concretude nem interesse pelo que será de nós amanhã mesmo ou dentro de cinco anos, pelo que não prevemos. Já na viagem de núpcias era como se houvesse sido perdido e não existisse o futuro abstrato, que é o que importa, porque o presente não o pode tingir nem assimilar”.
O futuro abstrato, o amanhã eterno, que não será jamais alcançado. O livro trava relações com o tempo, com a morte – ainda que metafórica, no aniquilamento cotidiano. As idas e vindas no tempo são rapsódicas à maneira das ladainhas que o narrador lembra ter ouvido de sua avó, a ladainha que as mulheres de sua infância cantarolavam durante a distração do dia-a-dia, “aquele canto inconsciente que não tem destinatário, o mesmo canto das empregadas quando esfregam o chão ou penduram roupa nos pregadores, ou passavam aspirador ou preguiçosos espanadores nos dias em que eu estava doente e não ia à escola e via o mundo de meu travesseiro”. O redemoinho de lembranças revira o existente, pois engloba o presente em que se vive ao passado que se viveu, como um filtro. Põe em questão a mudança que se desencadeia no presente quando se revela algo que nunca fora antes mencionado e, então, como que muda o passado; os segredos mudam o que aconteceu se tudo o que aconteceu é memória. Tema caro ao autor que, de outra maneira, persiste no livro Seu rosto amanhã; nele, escreve: “O relato nos afeta mais do que os fatos, mesmo o relato do que nunca ocorreu”. A ladainha do tempo passando e a rapsódia cômica de sua lembrança, a desprender-se num simples escamotear.