Literatura

A materialidade as palavras

26 novembro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Nuno Ramos não é um escritor simples. Como artista plástico, é conhecido por instalações grandiosas, que beiram o constrangimento do senso comum,  por um lado, e, por outro, atingem o extremo sensorialismo, cujo alcance é plástico e linguístico, multiplamente metafórico e simbólico.

Publicado em 2011, O pão do corvo é controverso quanto a sua classificação: majoritariamente considerado um livro de contos, houve quem o classificasse um livro de poesia em prosa ou mesmo uma obra filosófica. O artista, porém, ao escrever estas dezessete narrativas curtas, utiliza a prosa e a poesia aliadas a um terceiro meio: a plasticidade posta por escrito, num ambivalente tom fantástico nada imune à gravidade e densidade da matéria.

Segundo Noemi Jaffé, “existe algo único em “O Pão do Corvo”. Uma total ausência de protagonistas (todos os personagens são “eu”, “ele”, “ela”, “nós”), ausência de história, de espaço e de tempo certos. É como se ouvíssemos a fala das coisas, as coisas pensando sobre si mesmas, antes de serem inseridas em algum lugar narrativo ou paisagem. Até mesmo quando se sabe que o “eu” é uma pessoa, trata-se de uma pessoa-coisa, como a pele ou a carne da pessoa falando de si. São conjecturas físicas sobre a condição quase repulsiva de ser uma coisa”.

Nas palavras de Rodrigo Naves, Nuno tem uma “quase literal necessidade de escarafunchar a entranha das coisas”. Segundo o crítico, “o escritor Nuno Ramos se esforça para instilar nas palavras um peso que as impeça de serem apenas abstrações que agrupem sob seu manto classes genéricas de coisas (“pedras”, “ossos”, “braços” etc.). O próprio título abstruso dos livros é indicador dessa intenção. […] De certo modo, Nuno esculpe com o verbo. No entanto, esse embate do artista com as palavras traz consigo algumas dificuldades. Quando Nuno Ramos procura narrar com essas palavras encaroçadas — como ocorre em partes de “O pão do corvo” —, penso que as dificuldades que ele mesmo se impõe produzem na narrativa uma tragicidade problemática — a narrativa e a dificuldade de narrar —, na qual um simples “bom dia” parece arrastar consigo todas as dores do mundo”.

Há breves fábulas, como Cinza, que descreve um povo misterioso que aguarda a aniquilação pelo fogo; contos como Lição de Geologia, em que as coisas, conscientes de si mesmas, envergonham-se e cobrem-se de pó, penugem, fuligem, tentando disfarçar sua identidade.

No conjunto do livro, confundem-se o inorgânico e o orgânico, a origem e o destino – a morte da matéria. Paira um tempo incerto, mas materializado, da tomada de fôlego anterior à pronúncia da palavra.

Há uma camada de poeira que recobre as coisas, protegendo-as de nós. Polvilho escuro da fuligem, fragmento de sal e de alga, toneladas de matéria em grãos que vão cruzando o oceano transformam-se em fiapos transparentes depositados pouco a pouco para preservar o que ficou embaixo”.

 

A Editora 34 disponibiliza um trecho para visualização.

 

O PÃO DO CORVO

Autor: Nuno Ramos
Editora: 34
Preço: R$ 20,30 (88 págs.)

 

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