“Durante o dia mantinham-na o tempo todo a céu aberto, expondo-a o quanto possível diretamente ao sol. O lado vegetal de sua pessoa afastava qualquer perigo de insolação”.
Bertha, a menina-flor é uma das partes suprimidas do romance Locus Solus, do vanguardista Raymond Roussel (1877 – 1933).
A cuidadosa publicação, feliz ganho para o leitor brasileiro, veio a lume através do selo Armazém – comandado por Juliana Crispe e Marina Moros –, da editora Cultura e Barbárie. A ótima editora, sediada em Santa Catarina, publicou, em edições caprichosas, alguns livros de Roussel, entre eles o supracitado Locus Solus, Como escrevi alguns dos meus livros [edição bilíngue] e Piparote.
Dos trechos suprimidos, além de Bertha, a menina-flor, também Novas descobertas de Adinolfa foi publicado pela editora. Trata-se, diz Dirce Waltrick do Amarante, professora da UFSC, em resenha publicada no jornal O Globo, “de duas pequenas obras-primas”.
A narrativa desenvolve-se acompanhando o lírico experimento científico de fecundar mulheres com pólen de flores. A experiência, bem-sucedida, origina uma delicada menina, Bertha – “meio-termo entre a flor e a criança”. A professora Dirce Waltrick do Amarante pontua, na mesma resenha que, porém, ao lado de passagens de belezas singelas como essa, “há outras angustiantes, como quando Roussel descreve a transparência da pele da garotinha e o perigo constante de, ao ser tocada, abrir como pétala de rosa. Essa pele parece, por vezes, também grotesca, pois ‘graças à transparência dos tecidos da estranha criatura, podíamos ver o leite que, num jato branco puríssimo, se inseria lentamente no esôfago e descia até o estômago’”.
A autor, como bem registra a definição da editora na apresentação do romance Locus Solus, “fascinou os surrealistas, os nouveaux romanciers e pensadores como Michel Foucault e Gilles Deleuze e que, segundo César Aira, através de seu procedimento, deixou, pela primeira (e única?) vez, a literatura nua”.
A já citada professora e crítica Dirce do Amarante, em outro artigo, publicado no jornal O Estado de São Paulo, sintetiza: Roussel é “um daqueles escritores malditos que, embora tenham influenciado importantes artistas e movimentos da vanguarda do século 20, ainda hoje são pouco lidos pelo público em geral”. Como sua obra, diz a crítica, é “cheia de jogos de linguagem, vale a pena”, diz, “começar a leitura de sua obra pelo seu livro póstumo, ‘Como escrevi alguns dos meus livros’. Nele, Roussel explica alguns de seus métodos de escrita: ‘Escolhi duas palavras quase semelhantes (fazendo pensar nos metagramas). Por exemplo, bilhar e pilhador. Depois acrescentava algumas palavras equiparáveis, mas tomadas em dois sentidos diferentes, e obtinha assim duas frases quase idênticas’. Trata-se de uma criação baseada no ‘acasalamento de duas palavras tomadas em dois sentidos diferentes’. Roussel gostava de dizer que seu método era ‘essencialmente poético’, um parente da rima, ‘nos dois casos há criação imprevista devida a combinações fônicas”.
Octavio Paz encontra, no procedimento literário de Roussel, uma analogia com os processos criativos de Marcel Duchamp e de Mallarmé. Diz, o poeta mexicano, que trata-se de uma “metaironia”, crítica, capaz de destruir sua própria negação; as obras do artista e dos dois escritores, assim, realizam, segundo o poeta, uma “transposição”, em que as metáforas são expandidas e tornam-se, também, meditações sobre si mesmas. Nas palavras de Paz [Octavio Paz, Marcel Duchamp ou O castelo da pureza. Editora Perspectiva, 2012], trata-se da “concepção da linguagem como uma estrutura em movimento, essa descoberta da linguística moderna que tanto influiu na antropologia de Lévi-Strauss e, posteriormente, na nova crítica francesa. Para Roussel, é claro, o método não era uma filosofia mas um procedimento literário; para Duchamp, também, é apenas a forma mais afiada e eficaz da metaironia”.
A tradução de Bertha, a menina-flor é de Felipe Vicari de Carli
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Bertha, a criança-flor
[Nota da Revue: A história de Bertha, a criança-flor, ocupa as páginas 265-273 do manuscrito primitivo de Locus Solus. É um dos dois episódios que Roussel introduzia no fim do capítulo sobre o monstruoso diamante de aqua-micans (futuro capítulo III)].
Naquele momento veio em nossa direção uma mulher com o aspecto de uma robusta camponesa. Levava com as duas mãos diante de si uma espécie de esteira pintada de rosa sobre a qual estava estendida [sic] um corpo do mesmo rosa bem vivo que nos intrigou por seu aspecto meio-humano, meio-vegetal.
– Estas são Catherine Seyeux e sua filha Bertha, disse Boudet, chamando a mulher que se aproximou logo em seguida. Bertha, esparramada na esteira, dormia nua sob o sol sem que sua mãe buscasse de maneira alguma protegê-la de seus raios ardentes. Com mais ou menos seis semanas de vida, a criança tinha um aspecto desconcertante e angustiante. Sua pele, duma fineza e duma transparência inaudita, parecia exatamente com uma pétala de flor e tinha sobre toda sua extensão a mesma cor chapada de rosa vivo. Nessa epiderme fabulosa corria uma rede de veias não menos estranhas, cuja tonalidade verde tinha reflexos de esmalte semelhantes àqueles de certas flores. A pele era tão diáfana que se podiam ver através dela os diferentes órgãos do corpo.
Lendo uma muda interrogação em nossos rostos, Boudet nos explicou de que maneira Catherine Seyeux pudera engendrar uma criatura tão bizarra.
Fazia muito tempo que Boudet estava obcecado com a ideia, que cria realizável, de fecundar artificialmente uma mulher com pólen de flor. Diversas vezes havia feito tentativas em mulheres do campo, que selecionava especialmente robustas e prolíficas. Mas, por mais que tivesse tentado com toda a sorte de pólens diferentes, jamais havia obtido resultado algum.
Um dia, ao percorrer um jornal ilustrado, viu o retrato de uma camponesa do Texas que, com a idade de trinta e oito anos, não tinha menos que quarenta e cinco filhos, meninos e meninas, tendo, desde os dezoito anos, parido a cada ano dois e às vezes três gêmeos ou gêmeas. Na imagem se via a mãe sor ridente que, de pé e ao lado de seu marido, estava rodeada de seus quarenta e cinco rebentos, todos em perfeita saúde. O jornal dava o nome da mãe, (nome texano), e o de seu povoado, Ar…
Impressionado com tamanha facilidade de procriação, Boudet não pensou mais em outra coisa a não ser tentar sua experiência em Catherine Se., que mais do que qualquer outra poderia oferecer-lhe chances de sucesso. Escreveu-lhe apresentando em detalhe o que esperava dela e oferecendo-lhe magníficas condições se ela consentisse em vir para a França e se submeter a seus desígnios. Catherine mostrou a carta a seu marido, que, apesar de cultivador bem de vida, não podia ficar indiferente a uma boa soma de dinheiro, dados os pesados encargos que lhe impunha sua numerosa família. Ele deu o consentimento a sua mulher, que tomou o primeiro paquete e, uma bela manhã, chegou à casa de Boudet.
[…]
[Trecho extraído do “Dossiê Raymond Roussel”, volume especial da publicação Sopro, da editora Cultura e Barbárie, em 2013; o título e algumas soluções da tradução ainda foram trabalhadas depois].
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Autor: Raymond Roussel
Editora: Cultura e Barbárie Editora [selo Armazém]
Preço: R$ 25,00
Nota. É um momento lúdico, recomendado, o passeio pelo catálogo do selo “Armazém”.