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A viagem como vocação

15 fevereiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone
fotografia de W.B. Seabrook, analisada por Michel Leiris em Documents, n. 8, 1930, p.461

fotografia de W.B. Seabrook, analisada por Michel Leiris em Documents, n. 8, 1930, p.461

Fernanda Arêas Peixoto, em A viagem como vocação – Itinerários, Parcerias e Formas de Conhecimento, propõe um tema que aproxima diferentes autores – Leiris, Gilberto Freyre, Roger Bastide, Oliveira Lima e Pierre Verger: as viagens, realizadas entre as décadas de 1930 e 1960 pelo Brasil, pela América Hispânica e pela África.

A análise é guiada pela revisão dos textos dos autores à luz das viagens que realizaram em contextos muito precisos. Mais do que teorizar sobre as viagens, o livro mostra o grande interesse despertado pelas produções que as viagens geram, entre correspondências, diários, fotografias etc, que são valiosos instrumentos para a recuperação de processos de confecção de conhecimento. Fernanda Peixoto mostra um verdadeiro “ateliê” do criador, que passa a ser entrevisto através das análises, um espaço de experimentações, que tende a ser excluído quando da apresentação pública das obras.

Para a autora, a viagem é forma de acesso à produção das ideias e do conhecimento, ela própria aparece como uma forma de estar – e ser – no mundo, definindo um espaço próprio, provisório, como o são os percursos e as ideias.

O livro foi lançado pela Edusp no segundo semestre do ano passado. Dividido em sete capítulos, perpassa ensaios, artigos acadêmicos, textos jornalísticos, relatos de viagem e prosa de ficção, correspondências, diários, escritos de ocasião, anotações, desenhos e fotografias, a partir dos quais a autora investiga processos de confecção do conhecimento e os bastidores do trabalho intelectual. Profissão e vocação; formação e transformação; geografias, trânsitos e redefinições de pontos de vista: circulação de saberes e parcerias; viagem e memória; a condição estrangeira (suas potencialidades e limites), todos estes são temas e problemas que essas experiências de viagem trazem à tona, cada qual ao seu modo.

As viagens descritas são dos mais variados tipos: viagens profissionais, de estudo, pesquisa e formação; viagens de passeio e turismo; viagens de descoberta e reconhecimento; viagens exteriores (deslocamentos no espaço) e interiores (que transformam os viajantes); viagens livrescas e expedições científicas.

De acordo com Guilherme Simões Gomes Júnior, professor de antropologia da PUC – SP, na resenha intitulada “Etnologia francesa no Brasil e na África”, publicada pela Revista Fapesp, “há um desenho explícito na disposição dos capítulos de A viagem como vocação”; o livro, apresenta o crítico, “apresenta seis estudos: dois que tratam exclusivamente de Roger Bastide, dois de Gilberto Freyre, um que mescla roteiros de Pierre Verger e Bastide e, por fim, um dedicado a Michel Leiris. Nesse quadro, o último parece destoar. De um lado, porque trata de uma viagem por acontecer, isto é, de um artigo – “L’oeil de l’ethnographe” – que Leiris escreve na França antes de partir para a Missão Dakar-Djibouti; de outro, porque o Brasil está ausente, enquanto nos cinco estudos que o precedem é o território visado e percorrido ou o lugar de onde se parte para, em outros quadrantes, ser reencontrado. Mas há um desenho oculto no qual o ensaio sobre Leiris passa a fazer sentido (o leitor poderia começar por ele). Porque na linha do tempo trata da experiência mais recuada e diz respeito ao momento decisivo (1930) no qual a etnologia francesa começa a sair de seus gabinetes e passa a ter por base etnografias de pesquisadores também franceses. Os outros ensaios tratam de viagens posteriores”. Segundo Gomes Júnior: “Nesse segundo desenho, no qual a escola francesa de sociologia e etnologia é uma espécie de sujeito oculto, é Gilberto Freyre quem destoa. Há pouco espaço para tratar dele, mas cabe uma palavra. Enquanto as viagens de Leiris, Bastide e Verger são carregadas de reflexividade e desejo de descoberta, a viagem à África de Freyre não passa de um périplo de autoafirmação, suas fotos entre monumentos e nativos estão carregadas de uma perspectiva imperial. Freyre, no auge de sua consagração, confirma o que já sabia”.

Segundo o professor: “Com o artigo “Lévi-Strauss no Brasil: a forma- ção do etnólogo” (1998) e o livro Diálogos brasileiros (2000), A viagem como vocação (2015) forma um conjunto incontornável de excelentes estudos sobre a escola francesa no Brasil e na África”.

No artigo “A cidade e seus duplos: os guias de Gilberto Freyre”, publicado na Revista Tempo Social em 2005, a autora, Fernanda Peixoto, faz uma interpretação dos guias de cidades escritos e publicados por Gilberto Freyre nos anos de 1930: o Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife [1934] e Olinda – segundo guia prático, histórico e sentimental de cidade brasileira [1939]. Diz Peixoto: “A leitura detida dessas obras, pouco analisadas, permite discutir uma série de questões, já que Freyre fala da(s) cidade(s), de si mesmo e de uma cena de época. É sob essa orientação – a condição de leitora se confunde com a de turista – que procuro seguir seus traçados urbanos, atenta às imagens projetadas sobre a cidade e sobretudo às pistas lançadas sobre sua própria condição de intérprete da cena urbana e da vida social brasileira. O itinerário desenhado por Freyre funciona também como bússola para localizar sua posição como analista da modernização e da modernidade, a partir da consideração da cena regional. Os textos apresentam, numa espécie de drágea concentrada, temas e problemas que mobilizaram o autor durante toda a vida”.

Em outro artigo, apresentado no Encontro Anual da Anpocs, “Diálogo interessantíssimo: Roger Bastide e o modernismo”, a autora pontua que as “relações que se estabeleceram entre Roger Bastide e o grupo modernista em São Paulo não constituem novidade para os estudiosos que se debruçaram sobre estes autores, nem para aqueles que se dedicaram à compreensão do período de modo mais geral”. Ela mostra que “ os primeiros passos de Bastide no Brasil são dados segundo a orientação de um roteiro previamente traçado pelo grupo paulista, e por Mário de Andrade em particular. Bastide refaz um percurso de coloração modernista – temas, viagens, leituras – e, ao fazê-lo, descobre novos atalhos. “Turista aprendiz” que durante suas andanças vai introduzindo alterações na rota original”. Segundo Peixoto, o diálogo entre Bastide e o grupo modernista foi o veio através do qual, diz ela, “Bastide define o seu lugar como intérprete da sociedade e da cultura brasileiras. […] é no debate com os modernistas que o sociólogo problematiza o seu olhar de estrangeiro – logo, a sua identidade – na busca da “alma brasileira”, estabelecendo um patamar de observação”.

Fernanda Arêas Peixoto é professora do Departamento de Antropologia da FFLCH-USP, onde realiza pesquisas em torno do pensamento social brasileiro, da história da antropologia e da história intelectual.

 

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A VIAGEM COMO VOCAÇÃO – ITINERÁRIOS, PARCERIAS E FORMAS DE CONHECIMENTO

Autor: Fernanda Arêas Peixoto
Editora: EDUSP
Preço: R$ 31,50 (288 págs.)

 

 

 

 

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Ninguém sabe melhor que tu, sábio Kublai, que nunca se deve confundir
a cidade com o discurso que a descreve. No entanto, há uma relação entre ambos.

ITALO CALVINO, As cidades invisíveis.

[passagem utilizada como epígrafe pela autora no supracitado artigo “A cidade e seus duplos: os guias de Gilberto Freyre”]

 

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