Guia de Leitura

Literatura de cordel

12 fevereiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

A literatura de cordel é uma das mais ricas e genuínas formas de literatura popular mantidas no Brasil. Espontaneidade e rigidez na métrica pontuam as narrativas com a melodia poética das rimas, característica inconfundível. Contam seus cantos e contos que, oriunda de Portugal, chegou com a colonização à Bahia e, dali, irradiou-se para os demais estados do nordeste brasileiro e recebeu o nome de poesia popular.

 

 

J. Borges, "Cordel"

J. Borges, “Cordel”

A editora Hedra tem uma coleção de 22 volumes de livros de cordéis, representando alguns dos mais conhecidos cordelistas brasileiros. Entre os livros, alguns exemplos são: Zé Vicente – nome pelo qual era conhecido o cordelista paraense Lindolfo Marques de Mesquita –, Téo Azevedo – cantador, repentista e violeiro, foi autor de quinhentas histórias da literatura de cordel, mais de mil e quinhentas músicas gravadas por vários intérpretes, foi, durante quarenta anos, produtor musical e produziu mais de três mil trabalhos, lançou quinze cds como cantador e, por fim, ainda foi autor de catorze livros sobre cultura popular brasileira –, Neco Martins – primeira antologia representativa do cordelista citado por folcloristas do final do século XIX e a quem Câmara Cascudo, em 1939, referiu-se, em Vaqueiros e Cantadores –, Francisco das Chagas Batista, Cuíca de Santo Amaro.

J. Borges é um dos cordelistas mais (re)conhecidos no Brasil. Nasceu no município de Bezerros, em Pernambuco, em 1935. Em 1964, passou a dedicar-se exclusivamente a sua atividade artística de xilogravador e poeta popular. Participou de exposições na França, Alemanha, Suíça, Itália, Venezuela e Cuba. Recebeu, dentre diversos outros, o Prêmio Cultura promovido pela Unesco e a Medalha de Honra ao Mérito outorgada pelo Ministério da Cultura, ambos em 2000, pelo conjunto de sua obra. É um dos principais artistas populares atualmente em atividade no Brasil. Continua trabalhando ao lado dos filhos, em seu ateliê em Bezerros.

Como registra o verbete da Enciclopédia do jornal O Nordeste, em 1956 J. Borges “pegou o primeiro lote de folhetos para vender. ‘Sempre fazendo mais fé na poesia, abandonei todas as outras profissões para me dedicar à literatura de cordel’, conta. Com 29 anos de idade, resolveu que iria escrever cordel. Nascia assim O Encontro de Dois Vaqueiros no Sertão de Petrolina, que tem na capa uma xilogravura do Mestre Dila. O primeiro cordel de J. Borges foi um tremendo sucesso: vendeu mais de cinco mil folhetos. Foi preparando o original de O Verdadeiro Aviso de Frei Damião Sobre os Castigos que Vêm que o poeta se transformou em artista plástico. Sem dinheiro para pagar um ilustrador, J. Borges decidiu ele mesmo entalhar na madeira a fachada da igreja de Bezerros. Nunca mais parou. Começou a fazer matrizes por encomenda e também para ilustrar os mais de 200 cordéis que lançou ao longo de todos estes anos. Foi descoberto por colecionadores e marchands. Seu trabalho levado aos meios acadêmicos do País. Durante a década de 70, J. Borges começou a ampliar os horizontes de sua obra, gravando matrizes dissociadas dos cordéis, com grandes dimensões”.

Em entrevista, o cordelista analisa: “Esses folhetos ensinaram muita gente a ler. Eu, por exemplo, tive apenas 10 meses de estudo. O que aprendi foi dentro dos cordéis. Tinha poetas amigos meus, muitos já falecidos, que nunca pisaram numa escola. Aprenderam juntando letra no interesse de saber como fazer o verso, de ler a estrofe completa. […] Os folhetos ainda são muito apreciados quando há um boato. […] Por exemplo, o chupa-cabra repercutiu no Brasil todo, mas como é que iam mostrar, se era uma coisa abstrata, que não existia? O cordel foi lá e mostrou, por meio da gravura”.

 

Robert Grélier, "As crostas do sol"

Robert Grélier, “As crostas do sol”

O belíssimo As crostas do sol, organizado por Robert Gréllier, é fartamente ilustrado com xilogravuras de cordéis. A edição, muito cuidadosa, foi publicado pela editora Massanguana, da Fundação Joaquim Nabuco, em parceria com a editora Index. O autor apresenta uma boa perspectiva estética da dinâmica histórica, geográfica e social na qual desenvolveu-se o cordel.

O livro é dividido em duas partes; a primeira, “Eu canto o sol”, conta a história do cordel, à maneira de um cordel. Pode-se dizer que o complexo cenário que o cordel ao mesmo tempo cria e representa, faz com sua história necessariamente extrapole-se; por um lado, na história da própria xilogravura – desenvolvida com maiores detalhes pelo autor na segunda parte do livro, intitulada “Com os dedos manchados de tinta” – e, por outro, que se torne uma parte da história Brasil, a história do sertanejo, contada de maneira poética.

No início do primeiro texto, Grélier conta: “Á margem de um círculo, percorrendo todos os caminhos, estradas poeirentas de terra batida, homens e mulheres que vão á feira. Como se fosse à fonte beber a água de todos os rios. Do São Francisco, como de seu afluente, o Urucuia. Deixaram suas casas caiadas de branco. Guiados por um círculo branco, para evitar andar sobre a própria sombra do meio-dia, pariram ao raiar do sol. A feira é um lago que não pode abrir o olho, tão encoberto está de nenúfares gigantes. Homens rudes para uma terra rude, áspera, que dá muito pouco da sua fertilidade”. Em outro trecho, “Eu canto o sol do fósforo, do riso descontraído, aberto”, o autor diz: “Primeiro as pessoas chegam: homens, mulheres, muitas vezes acompanhados de seus filhos. Como se já soubessem o que ia ser dito, se colocam num círculo imaginário. Um grupo frente ao outro. Sem conhecer os cantadores, sua escolha já está feita. Em seguida, os dois homens chegam, os donos do espetáculo com a viola na mão, penetram no círculo que se abre para lhes dar passagem. Eles falam e cotam a história do Brasil. Uma história que, evidentemente, não se encontra nos manuais escolares. Um relato preparado para prender a atenção. Os tempos se misturam livremente. A geografia é uma matéria limitada ao espaço do sertão. De repente, aproveitando-se de um incidente ou de uma observação da multidão, eles começam o improviso. Num duelo cantado, cada um tenta fazer um repente mais bonito que o compadre, para seduzir os espectadores. Começa então a cantoria, uma das formas mais tradicionais de comunicação rural”.

Sobre as xilogravuras, enfoque do livro, Grélier diz: “Estes xilógrafos são antes de tudo comunicadores, porque o folheto foi criado para dizer. Não distribuem mensagem, eles dão forma e organização às informações desprezadas por outros. O que não quer dizer que trabalham sobre os refugos da vida. Com elegância, gravam a fragilidade, o pudor, o silêncio dos que não têm a palavra”.

O livro tem uma epígrafe precisa quanto à preparação do ânimo de seu leitor para o universo em que adentrará através de suas páginas; trata-se da seguinte constatação de Bachelard: “O que conta nas imagens não são essencialmente as formas e seus conteúdos, mas a força iconoclasta que as arrasta magnificamente”.

 

 

Marco Haurélio (org.), "Antologia do cordel brasileiro"

Marco Haurélio (org.), “Antologia do cordel brasileiro”

A Antologia do Cordel Brasileiro, com organização e apresentação de Marco Haurélio, um dos nomes de maior destaque na literatura de cordel na atualidade – estudioso, poeta e cordelista –, reúne 15 cordéis de diferentes gerações, abrangendo todas as fases da poesia popular nordestina.

Neste volume, figuram histórias de autoria de renomados cordelistas do passado, como o paraibano Leandro Gomes de Barros, até cordéis escritos por membros da vigorosa geração atual, poetas como Pedro Monteiro, Rouxinol do Rinaré, Arievaldo Viana, Evaristo Geraldo da Silva e Klévisson Viana.

Aqui é possível comparar os estilos de cordéis e compreender o quão variados podem ser, inspirados desde o conto maravilhoso, passando pelo conto de fadas, chegando até influências de mitos, da Grécia Antiga, ou das histórias de animais.

Na apresentação ao volume, os editores ressaltam: “Essa Antologia do Cordel Brasileiro sinaliza com clareza a injustiça que seria classificar o cordel como arte a ser resgatada, como se ela tivesse caído em desuso e fosse necessário reabilitá-la”. De fato, mesmo nos períodos menos profícuos para a produção de cordéis, por exemplo José Costa Leite, Antônio Américo de Medeiros, Apolônio Alves e Gonçalo Ferreira da Silva, para citar somente alguns, continuaram escrevendo e publicando folhetos regularmente, inclusive romances.

As xilogravuras que ilustram o livro são de autoria de Erivaldo, um dos artistas mais representativos da xilogravura brasileira, ilustrador de mais de uma centena de livros e folhetos de cordel.

 

Márcia Abreu, "Histórias de cordéis e folhetos"

Márcia Abreu, “Histórias de cordéis e folhetos”

Márcia Abreu, professora da UNICAMP, organizadora do livro Histórias de Cordéis e Folhetos (publicado pela editora Mercado de Letras), busca, entretanto, confrontar as duas produções culturais frequentemente associadas – a literatura de cordel portuguesa e a literatura de folhetos no nordeste do Brasil –, sugerindo um equívoco na hipótese de associação entre elas. Márcia indica, ao longo do estudo traçado pelo livro, a impossibilidade dessa associação e propõe motivações para o que ela identifica como uma “teoria da vinculação entre ambas as formas literárias.

No artigo Então se forma a história bonita” – relações entre folhetos de cordel e literatura erudita, Márcia Abreu analisa: “A literatura de folhetos produzida no Nordeste brasileiro desde o final do século XIX coloca homens e mulheres pobres na posição de autores, leitores, editores e críticos de composições poéticas. Em geral, associam-se esses papéis a pessoas da elite – se não financeira, ao menos intelectual –, mas, no caso dos folhetos, gente com pouca ou nenhuma instrução formal envolve-se intensamente com o mundo das letras, seja produzindo e vendendo folhetos, seja compondo e analisando versos, seja lendo e ouvindo narrativas. O sucesso dos folhetos deve-se a um conjunto de fatores, entre os quais se destaca a forte relação com a oralidade mantida por essas composições […] escritos em verso compostos segundo um padrão que favorece a realização de sessões coletivas de leituras em voz alta. Ainda que a forma seja efetivamente fundamental, a superioridade dos folhetos deve-se também ao fato de eles apresentarem as notícias interpretadas segundo os valores compartilhados pelo público. Por isso, eles parecem superiores aos jornais em que se apresentam notícias em prosa”.

A despeito, contudo, das discussões sobre as possíveis influências iniciais ou propulsoras do cordel, sua relevância cultural é ponto pacífico. Os cordelistas conseguiram expressar e retratar sua realidade aliando um profundo perspectivismo social a uma moral própria reguladora – por exemplo na figura do herói preenchida pela do cangaceiro – e à subjetividade compartilhada nas referências locais de memória coletiva, ao ponto da identidade dos autores confundir-se com a de seu grupo. O cordel, assim, não restringiu sua relevância ao aspecto documental: numa linguagem própria que selava a total cumplicidade, inclusive em termos de sensibilidade simbólica, entre autores, contadores, leitores e ouvintes, consolidou-se, também, enquanto manifestação poética e lúdica.

 

 

José Ramos Tinhorão, "Cultura popular"

José Ramos Tinhorão, “Cultura popular”

José Ramos Tinhorão, autor de mais de vinte e cinco livros sobre a música e a cultura brasileiras e um dos mais importantes pesquisadores da área, neste seu Cultura Popular perpassa a história de nossa arte popular. Preciso e claro, enfático, o livro é, também, divertido e sobretudo original. Tinhorão analisa formas de expressão artística, dentre as quais, muitas são esquecidas ou mesmo desconhecidas.

O livro reúne dezoito ensaios; a presente edição, revista e ampliada, conta ainda com mais sete novos textos — sendo cinco deles inéditos. Cultura popular é dividido em duas partes: a primeira traz uma série de “Temas” caros ao autor, como o circo, as festas populares e a literatura de cordel; e a segunda aborda “Questões” em geral polêmicas, como a música sertaneja, a globalização ou as relações entre arte e mercado.

Um dos grandes méritos do pesquisador é a acuidade com a diversidade das fontes. A análise que dedica-se ao século XVII possui um material variado, o que inclui textos pouco conhecidos, sobretudo entre sermões e folhetos de cordel, além de impressões de estrangeiros, processos da Inquisição e a obra poética de Gregório de Matos.

A análise de Tinhorão articula uma delicada análise sociológica à erudita investigação histórico musical. É vasto o leque de assuntos de que ele trata neste livro: o circo, as origens do cordel, os pastoris, os impactos das tecnologias sobre a música popular, os ritmos negros, a poesia das letras das canções. Sobre os cordéis, diz: “Fenômeno cultural ainda não suficientemente estudado do ponto de vista histórico-social, a produção de uma literatura popular em versos divulgada em folhetos impressos, chamados ‘de cordel’, garante ao Nordeste brasileiro a condição de talvez único continuador no século XXI da mais antiga forma de transmissão de saber da humanidade: a divulgação da informação pelo processo ritmo-mnemônico das palavras”.

 

 

Francisco Cláudio Alves Marques, "Um pau com formigas ou o mundo às avessas: A Sátira na Poesia Popular de Leandro Gomes de Barros"

Francisco Cláudio Alves Marques, “Um pau com formigas ou o mundo às avessas: A Sátira na Poesia Popular de Leandro Gomes de Barros”

Francisco Cláudio Alves Marques, no ótimo Um pau com formigas ou o mundo às avessas: A sátira na poesia popular de Leandro Gomes de Barros, analisa o contexto nacional em que despontou Leandro Gomes de Barros – “rei da poesia do sertão”, segundo Drummond –, que, junto com tantos outros poetas da época, foi responsável pela construção de um discurso alternativo acerca da Primeira República e da nascente “civilização” brasileira. O período, marcado pela transição do Império para a República, estava impregnado de valores, tradicionais e modernos, que se sobrepunham e colidiam; a maior parte da população nordestina, analfabeta e despolitizada, não compreendia o motivo de tantas mudanças, porém sentia os reflexos dos novos tempos. Muitos dos acontecimentos só chegavam àquela parte da população pela literatura de cordel, que era, também, o grande meio pelo qual a voz do sertanejo podia fazer-se ouvir.

A expressão “pau com formigas”, popularmente usada para se referir a uma situação constrangedora ou a uma complicação qualquer, tem seu sentido alargado por Leandro Gomes de Barros, que a emprega de forma recorrente como metáfora da violência e da insignificância social que definiam a realidade do país.

De acordo com o autor, “dentre os poetas populares do sertão nordestino que criticaram as medidas governamentais do governo republicano, destacou-se a figura de Leandro Gomes de Barros. Sua sátira estende-se aos representantes do governo no contexto da Primeira República, atingindo políticos, bacharéis, padres, coronéis e oligarcas”. Segundo o autor, a “produção satírica de Leandro Gomes de Barros caracterizou-se por uma forte reação à República e a tudo que ela representava naquele momento da história do país, mas, sobretudo, por ter tentado revelar ao público iletrado e despolitizado do Nordeste, as várias faces de uma realidade que lhe fugia à compreensão”. Sua poesia, produzida maciçamente no Recife e, conta Marques, “divulgada em todas as capitais nordestinas”, realizava “uma espécie de politização às avessas do homem do sertão, do ‘beiradeiro’ que não tinha contato com as notícias veiculadas pelos jornais que percorriam o país. O folheto de cordel era a única fonte de informação e de entretenimento que atravessava as infindáveis léguas que levavam aos vilarejos e pequenas cidades do interior do Nordeste. Era, portanto, através das lentes satíricas do(s) poeta(s) popular(es) que o sertanejo via e entendia aquele mundo prenhe de novidades e mudanças inusitadas”.

 

 

Cora Coralina escreveu Meu Livro de Cordel, sua homenagem “a todas as estórias e poesias de Cordel” e à sua afinidade com “os anônimos menestréis nordestinos, povo da minha casta, meus irmãos do nordeste rude”. Jorge Amado escreveu, em Tereza Batista cansada de guerra,um capítulo contado em forma de cordel.

Câmara Cascudo, descrevendo o cordel, atribui sua função poética à capacidade de “fotografar”, ou seja, de apresentar uma imagética por meio das palavras.

A espantosa literatura oral brasileira, em geral, e a literatura de cordel, em especial, nos remetem à questão do narrador de Walter Benajmin, ao reconhecimento, por parte do filósofo, da perda da narrativa compartilhada verbalmente. Pois, o risco de desaparecimento do narrador, previsão diante do caos da guerra e do fascismo, pode ser refutado, a partir de uma perspectiva dinâmica da tradição, pelo jogo entre faculdade de narrar e elaboração da memória.

No Brasil, a partir dos poetas pioneiros Leandro Gomes de Barros e Silvino Pirauá de Lima, a literatura oral sempre teve no conto popular um motivo essencial. As histórias sobreviveram até hoje, através dos versos de sete sílabas, característica marcante do cordel. Há críticos que simplificam a importância do cordel brasileiro, claro, imensa, à sua função de “jornal de povo”; porém, o poeta cordelista trata ainda melhor dos contos populares, dos causos vindos não se sabe de onde, contados não se sabe por quem; da pura narrativa enquanto experiência compartilhada.

Há quem não saiba, mas a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, ABLC, existe há mais de vinte anos. A ABLC mantém um site com notícias, acervos de imagens das gravuras e matrizes, cordéis digitalizados, informações sobre a história da literatura de cordel (ou, ao menos, uma versão da história), sobre suas métricas e sobre alguns dos principais cordelistas.

 

.Nota.

O site universia disponibiliza mais de quarenta livros de cordel para download gratuito – Confira aqui.

 

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