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Metafísicas canibais

1 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
fotografia de Eduardo Viveiros de Castro

fotografia de Eduardo Viveiros de Castro

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro acaba de lançar o livro Metafísicas canibais, escrito à guisa de resenha  do livro imaginário que ele porém julga que jamais será capaz de terminar: O Anti-Narciso. Este, por sua vez, teria como objetivo provar a seguinte tese: a antropologia é uma versão das práticas de conhecimento indígenas que lhe serviram de estudo.

O perspectivismo ameríndio, conceito desenvolvido por Viveiros de Castro e que afirmou a sua celebridade intelectual enquanto estudioso original e relevante, é um exemplo de como o estilo de pensamento nativo afeta a imaginação antropológica. A reflexão do autor é guiada por duas obras fundamentais da filosofia e da antropologia: O Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, e as Mitológicas, de Claude Lévi-Strauss. A aproximação entre filosofia e antropologia visa a investigação da seguinte pergunta, “o que deve conceitualmente a antropologia aos povos que estuda?”. As culturas e sociedades estudadas antropologicamente “influenciam, ou, para dizer de modo mais claro, coproduzem” as teses formuladas.

Estas Metafísicas canibais reúnem parte significativa das reflexões que Viveiros de Castro vem desenvolvendo desde a publicação de A inconstância da alma selvagem, inclusive a reformulação da teoria perspectivista. 

Em entrevista concedida ao jornal O Globo, o autor disse, ao ser questionado sobre uma nota, em Metafísicas canibais, em que comenta ter exposto a ouvintes ameríndios suas teses sobre o perspectivismo e que eles perceberam as implicações que elas poderiam ter para “as relações de força em vigor entre as ‘culturas’ indígenas e as ‘ciências’ ocidentais que as circunscrevem e administram”: “[…] Em 2006, a convite do Instituto Socioambiental, fiz uma palestra para uma plateia de cientistas do INPA, em Manaus, sobre as cosmologias amazônicas e as concepções indígenas da natureza da natureza, por assim dizer. Ao entrar na sala, descobri, com não pouca ansiedade, que apenas metade da plateia era composta de cientistas (biólogos, botânicos, pedólogos etc.) — e que a outra metade da sala estava cheia de índios do Rio Negro. Falar do que pensam os índios diante de uma plateia de índios não é exatamente uma situação confortável. Decidi então apresentar uma versão esquemática do que eu sabia a respeito do modo como o que chamei de “perspectivismo ameríndio” se manifestava nas culturas rionegrinas (povos Tukano e Aruaque, principalmente). No meio da palestra fui percebendo os cientistas cada vez menos interessados naquilo, e os índios cada vez mais agitados. Na hora das perguntas, nenhum cientista falou nada. Os índios, com sua cortesia habitual, esperaram os brancos presentes pararem de não dizer nada até que eles começassem a falar. Uma senhora então se levantou e, dirigindo-se à metade branca e científica da plateia, disse: “vocês precisam prestar atenção ao que o professor aí está dizendo. Ele está dizendo o que a gente sempre disse: que vocês não veem as coisas direito; que, por exemplo, os peixes, quando fazem a piracema (a desova) estão na verdade, lá no fundo do rio, transformados em gente como nós, fazendo um grande dabucuri (cerimônia indígena típica da região)”. E outro índio perguntou: “aquilo que o professor disse, sobre os morros da região serem habitados por espíritos protetores da caça, é verdade. Mas isso quer dizer então que destruir esses morros com garimpo e mineração é perigoso, não é mesmo? E não quereria dizer também que índio não pode ser capitalista?” Percebi, naquele confronto entre cientistas que estudam a Amazônia e os índios que vivem lá, que os primeiros estão interessados apenas no saber indígena que interessa ao que eles, cientistas, já sabem, isto é, àquilo que se encaixa na moldura do conhecimento científico normalizado. Os índios são “úteis” aos cientistas na medida em que podem servir de informantes sobre novas espécies, novas associações ecológicas etc. Mas a estrutura metafísica que sustenta esse conhecimento indígena não lhes dizia absolutamente nada, ou era apenas um ornamento pitoresco para os fenômenos reais. E os índios, ao contrário, se interessaram precisamente pelo interesse de um branco (eu) sobre isso. O que me deu muita coisa a pensar”.

Na mesma entrevista, Viveiros de Castro comenta também outra ideia desenvolvida no livro, sobre a necessidade de não neutralizar o pensamento indígena, para leva-lo a sério: “Neutralizar este pensamento significa reduzi-lo ao efeito de um complexo de causas ou condições cuja posse conceitual não lhes pertence. Significa, como escrevi no livro, pôr entre parênteses a questão de saber se e como tal pensamento ilustra universais cognitivos da espécie humana, explica-se por certos modos de transmissão socialmente determinada do conhecimento, exprime uma visão de mundo culturalmente particular, valida funcionalmente a distribuição do poder político, e outras tantas formas de neutralização do pensamento alheio. Trata-se de suspender tais explicações-padrão, típicas das ciências humanas, ou, pelo menos, evitar encerrar a antropologia nela. Trata-se de decidir, em suma, pensar o outro pensamento como uma atualização de virtualidades insuspeitas do pensamento em geral, o “nosso” inclusive. Tratá-lo como tratamos qualquer sistema intelectual ocidental: como algo que diz algo que deve ser tratado em seus próprios termos, se quisermos respeitá-lo e incorporá-lo como uma contribuição singular e valiosa à nossa própria e orgulhosa tradição intelectual. Só depois disso poderemos, se tal for nossa veleidade, anatomizá-lo e dissecá-lo segundo os instrumentos usuais da redução científica das práticas de sentido humano”.

Sobre a filiação filosófica de Viveiros de Castro em relação a Gilles Deleuze, é ilustrativa a seguinte passagem, do artigo “Filiação intensiva e aliança demoníaca”, publicado na Revista Novos Estudos Cebrap: “Para a minha geração, o nome de Gilles Deleuze evoca de pronto a mudança de orientação no pensamento que marcou os anos em torno de 1968, durante os quais alguns elementos-chave de nossa presente apercepção cultural foram inventados. O significado, as consequências e a própria realidade dessa mudança são objeto de uma controvérsia que ainda grassa. Para os servidores espirituais da ordem, aquelas muitas “petites mains” que trabalham pela Maioria, a mudança representou sobretudo algo de que foi e continua a ser preciso proteger as gerações futuras – os protetores de hoje tendo sido os protegidos de ontem e vice-versa e assim por diante –, difundindo a convicção de que o evento-68 se consumiu sem se consumar, ou seja, que na verdade nada aconteceu. A verdadeira revolução se fez contra o evento e foi ganha pela razão (para usarmos o eufemismo de praxe), força que firmou o Império como a máquina planetária em cujas entranhas realiza-se a união mística do Capital com a Terra – a “globalização” – e a sua transfiguração gloriosa em Noosfera – a “economia da informação”, ou “capitalismo cognitivo”. (Se o capital não está sempre com a razão, dir-se-ia que a razão está sempre com o capital.) Para muitos outros, ao contrário, os inservíveis que não conseguiram não escolher uma trajetória minoritária, insistindo romanticamente (para usarmos o insulto de praxe) que um outro mundo é possível, a propagação da peste neoliberal e a consolidação tecnopolítica das sociedades de controle só poderão ser enfrentadas se continuarmos capazes de conectar com os fluxos de desejo que subiram à superfície por um brilhante e fugaz momento; já lá vão quase quarenta anos. Para esses outros, o evento puro que foi 68 ainda não terminou, e ao mesmo tempo talvez nem sequer tenha começado, inscrito como parece estar em uma espécie de futuro do subjuntivo histórico”.

 

Além do lançamento do livro, o antropólogo tem também suas fotografias expostas em São Paulo, na mostra “Variações do corpo selvagem”, com curadoria de Eduardo Sterzi e Verônica Stigger.

Sobre sua produção como fotógrafo, Viveiros de Castro, em entrevista à Revista Cult, contou que seu trabalho fotográfico antecedeu o antropológico e que a passagem, do primeiro, para o registro dos povos indígenas,“se deu quando comecei minha formação como antropólogo e passei a trabalhar junto aos povos indígenas que conheci, os Yawalapíti do Alto Xingu, os Kulina do Alto Purus, os Yanomami da Serra de Surucucus e os Araweté do Ipixuna (Médio Xingu). Como gostava de fotografia e de fotografar, tinha uma câmera Pentax que ganhara em algum “rolo” (troca de algum objeto por outro com alguém que não me lembro quem), registrei o que via enquanto fazia o trabalho de pesquisa etnológico propriamente dito. Depois consegui uma velha Leica M2, um aparelho excelente, que troquei com o maestro Julio Medaglia pela Pentax (ele queria uma câmera reflex e uma teleobjetiva, e tudo o que eu queria era uma Leica…)”. Viveiros de Castro diz não utilizar a fotografia como instrumento etnográfico: “Não faço o que se chama de ‘antropologia visual’, seja por meio de fotografia, seja de vídeo. Minhas fotografias são – ou pelo menos eu achava que eram, até os curadores da mostra me mostrarem (com perdão do trocadilho) o contrário – um mero registro pessoal, tanto estético como sentimental, de minha passagem por esses povos e lugares. Graças ao olhar de Veronica [Stigger] e Eduardo [Sterzi], que leram o meu acervo fotográfico sob o prisma de meus textos antropológicos, é que pude perceber que havia um fio que conectava minha forma de fotografar – forma e conteúdo – e minha forma de pensar, os temas principais que me interessaram como etnólogo das sociedades e do pensamento ameríndio. Em particular, eles me ajudaram a ver, no que eu via, algo que eu não tinha visto, pelo que lhes sou imensamente grato: que o tema da corporalidade e da importância da visão como operador conceitual das cosmologias ameríndias refletia-se de algum modo em minha atividade (não direi jamais trabalho) como fotógrafo amador”. Ainda nesta entrevista, questionado sobre o Brasil “ter jeito”, Viveiros de Castro respondeu: “O Brasil não existe. O que existe é uma multiplicidade de povos, indígenas e não indígenas, sob o tacão de uma “elite” corrupta, brutal e gananciosa, povos unificados à força por um sistema mediático e policial que finge constituir-se em um Estado-nação territorial. Uma fantasia sinistra. Um lugar que é o paraíso dos ricos e o inferno dos pobres. Mas entre o paraíso e o inferno, existe a terra. E a terra é dos índios. E aqui todo mundo é índio, exceto quem não é”.

A exposição das fotografias pode ser vista no SESC Ipiranga até dia 29 de novembro. São 400 fotografias, exibidas pela primeira vez.

Metafísicas canibais é uma publicação co-editada pela Cosacnaify e pela ótima editora n-1. O volume conta com texto de quarta capa do filósofo francês Patrice Maniglier.

As editoras disponibilizam um trecho para visualização.

metafísicas canibais

 

 

METAFÍSICAS CANIBAIS

Autor: Eduardo Viveiros de Castro
Editora: Cosacnaify
Preço: R$ 31,50 (320 págs.)

 

 

 

 

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