Guia de Leitura

Idade das trevas?

2 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

A comum associação da Idade Média a uma época de trevas, lacuna obscura entre períodos de grande efervescência artística e cultural é questionada por historiadores, teóricos de arte, filósofos, críticos.

Alguns historiadores defendem que o Renascimento dos séculos XV e XVI não representou o fim da Idade Média, como se costuma pensar, mas sim o “terceiro” e mais importante Renascimento do próprio período medieval.

“O pensamento procura a conexão entre duas coisas não ao longo das sinuosidades ocultas de seus vínculos causais, mas sim saltando por cima das conexões de causa. A conexão não é um elo entre causa e efeito, mas entre significado e objetivo” – Huizinga.

 

Johan Huizinga, "O outono da Idade Média"

Johan Huizinga, “O outono da Idade Média”

O holandês Johan Huizinga, em seu Outono da Idade Média, publicado originalmente em 1919, afirma que o século XIV foi o último da Idade Média: a modernidade só teria sido esboçada com a Reforma Protestante, a partir de 1517. A Renascença permeia a era medieval.

O livro, considerado um clássico historiográfico, analisa a Idade Média sob a plenitude de seus contrastes, distante do lugar-comum segundo o qual ela não passaria de uma transição, longa e letárgica, entre o brilho da Antiguidade e do Renascimento. O autor mostra as formas de vida e de pensamento medievais, tal como se expressaram na cultura, na arte, na religião e no pensamento, e também nos modos de expressão da felicidade, do sofrimento, do amor e do medo da morte no dia a dia das pessoas.

Huizinga utilizou métodos e fontes históricas pouco usuais em sua época. Sua história não narra apenas os grandes fatos e feitos, mas detém-se nas nuances da vida cotidiana para perceber nos homens seus sonhos, medos, obsessões, sua maneira de pensar e de experimentar o mundo. Combinando a crença no poder revelador da obra de arte e um olhar muito semelhante ao de um antropólogo, ele se tornou um pioneiro do que mais tarde se denominou história das mentalidades.

A edição brasileira, traduzida direto do holandês Francis Petra Janssen, conta com um dossiê organizado por Anton van der Lem, um dos responsáveis pelo espólio do historiador, além de um aparato crítico e biobibliográfico, ensaio de Peter Burke e entrevista com Jacques Le Goff, além de um rico repertório iconográfico das obras citadas.

O livro foi escrito como uma resposta a Jacob Burckhardt e trava um diálogo direto com as ideias de A Cultura do Renascimento na Itália, questionando a importância, praticamente mítica, que este conferiu ao Renascimento italiano, ressaltando o fundo medieval, que o havia concebido e que preservou-se na cultura renascentista, principalmente na França e nos Países Baixos. 

 

 

Jacob Burckhardt, “A cultura do renascimento na Itália” [Edição de bolso]

Jacob Burckhardt, “A cultura do renascimento na Itália” [Edição de bolso]

A publicação, em 1867, de A cultura do Renascimento na Itália, considerada a obra-prima do historiador suíço Jacob Burckhardt, representou um momento crucial para a historiografia Tornou-se, na virada do século, não só um texto fundamental para historiadores, como também para filósofos e críticos de arte. Pois foi Burckhardt que, com essa obra, cunhou a concepção de Renascimento que persiste majoritariamente até hoje, a definição do período como de grande florescimento do espírito humano, espécie de “descoberta do mundo e do homem”.

Segundo o professor de estética do departamento de filosofia da USP Lorenzo Mammì, com a publicação do livro de Burckhardt, “o ‘homem do Renascimento’ se torna uma categoria antropológica, um modelo de vida. E aí começam os problemas”. Pois, pergunta o professor: “Existiu mesmo um ‘homem do Renascimento’, bon vivant e esclarecido, em oposição a um ‘homem da Idade Média’, carola e retrógrado?”.

Para Burckhardt, a sociedade italiana dos séculos XIV e XV produziu os primeiros homens modernos, cujas principais características são o humanismo, o desencantamento da natureza, o pensamento livre de paradigmas religiosos, a concepção de história.

Jacob Burckhardt aos poucos delimitou seu original campo de estudos em uma área totalmente diversa daquela dos historiadores políticos. Sua grande ruptura em relação à historiografia anterior foi a da negação de um sentido intrínseco aos acontecimentos.

Para Burckhardt a figura que melhor combina o devir histórico à cultura que ele encontra é o artista, por sua capacidade de captar os símbolos de uma época e, ainda assim, deixar entrever o que há de permanente. A metáfora pictórica é amplamente utilizada na análise do historiador.

Segundo Paula Vermeersch, pesquisadora em Sociologia e História da Arte e da Cultura pela Unicamp, no artigo “Jacob Burckhardt e suas reflexões sobre a história”: “A chave para a proposta de História cultural burckhardtiana realmente são as artes, sua especialidade primeira, mas Burckhardt foi um dos pioneiros a considerar todos os aspectos sociais no estudo do passado: festas, vestuário, política e até anedotas populares eram incluídas na sua pintura da Renascença. Nesse período, a Cultura, elemento dinâmico na dinâmica de forças que veremos a seguir, ofuscou o Estado e a Religião, criando uma sociedade atípica, culta, que respaldou o nascimento o indivíduo moderno (submergindo das águas da Idade Média, assim como a Vênus de Botticelli). A política, nesse movimento, também se torna uma Arte”.

 

 

Panofsky, "Renascimento e renascimentos na arte ocidental"

Panofsky, “Renascimento e renascimentos na arte ocidental”

Em Renascimento e renascimentos na arte ocidental, obra de 1957, Erwin Panofsky estuda a arte medieval e a do Renascimento, analisando seus limiares. Sua análise busca a interação entre os tipos; a influência das ideias filosóficas, teológicas e políticas.

Panofsky entende que os fundamentos humanísticos são fruto de uma articulação entre os conceitos de “humanitas”, tanto da antiguidade, quanto do medievo. Na antiguidade, o termo era dotado de valor positivo e conferia ao homem a civilidade; a concepção medieval deslocou o conceito para a distinção do homem em relação à divindade, ligando o vocábulo à efemeridade da vida humana. Panofsky comenta os trabalhos filosóficos de Marsílio Ficino e de Pico della Mirandolla, cujo desígnio fora reunir o pensamento clássico e a tradição cristã sob um mesmo viés coerente, capaz de dar sentido à existência do homem moderno.

Para Panofsky, não houve somente um renascimento, mas muitos. O que distingue, porém, o Renascimento italiano das retomadas anteriores, segundo ele, é a consciência de que o antigo já não existe, logo, da necessidade de recriá-lo. A Antiguidade, nesse sentido, era uma cultura que deveria ser resgatada após séculos de esquecimento; contudo, mais do que redescobrir o antigo, o Renascimento teria inventado a Idade Média.

Refletindo sobre o resgate da cultura antiga, Panofsky investiga a utilização, feita por Petrarca, de termos utilizados pelos teólogos e padres da Igreja, encontrados nas escrituras – como luz e sol contrapostos a noite e trevas. Foi Petrarca que, ao utilizar tais termos, definiu sua associação com o período de sua consolidação, ou seja, associação entre Idade Média e trevas. Além disso, o renascimento da antiguidade, por ele entrevisto, inspira-se na expressão de Horácio, ut pictura poesis, analogia entre a poesia e a pintura; para analisá-la, Panofsky busca em Bocaccio o elogio ao talento de Giotto e, em Filippo Villani, o elogio a Cimabue. Ambos, Giotto e Cimabue, buscavam a verossimilhança, perdida pelos cristãos; com eles, a pintura retoma a sua semelhança com a natureza, mesmo que ainda não sua semelhança com os clássicos. A leitura de Dante, Petrarca e Bocaccio se faz presente nos mesmos textos que elegem e divulgam a verossimilhança na imagem e são também estes mesmos autores que, revisitados pelos humanistas do século XV, chamam os artistas a intelectualizarem o seu fazer artístico.

Para Panofsky, a diferença fundamental entre o Renascimento do século XV e os Renascimentos medievais está na  visão  da Antigüidade como um ideal inatingível, mantida pelos homens do século XV, e com a qual os medievais não contavam.

 

 

Jacques Le Goff, "Homens e mulheres da Idade Média"

Jacques Le Goff, “Homens e mulheres da Idade Média”

Homens e mulheres da Idade Média, reunião de ensaios de vários autores organizado pelo historiador francês Jacques Le Goff, trata a época em questão como um tempo “muito mais positivo e mais progressista do que se pensou”, conforme as palavras do próprio Le Goff. O livro traça um panorama da Idade Média através de 112 de seus personagens mais notórios. Os perfis não se limitam a resumir suas vidas ou exaltar os feitos dos retratados, mas mostrá-los como testemunhas da época em que viveram. O resultado é a possibilidade de um olhar diferente, mais humano, sobre a História dita oficial, muitas vezes simplista ou reducionista.

Cristóvão Colombo, por exemplo, embora fosse um homem tipicamente medieval, “teria ficado muito surpreso que se fizesse dele um inventor da modernidade”. O livro também mostra que na Idade Média, talvez pela primeira vez, verificou-se um certo equilíbrio entre homens e mulheres em suas dimensões históricas, em grande medida graças à mudança de status da figura feminina sob a perspectiva clerical, através da santidade, notadamente no culto à Virgem Maria. Outra análise debruça-se sobre a análise do dinamismo artístico do período, materializado, sobretudo, na produção musical vocal e instrumental, na pintura e na arquitetura religiosa, ainda que os nomes dos artistas tenham sido ignorados pela História.

Homens e mulheres da Idade Média está dividido em cinco partes. A primeira, analisa o período entre a Antiguidade tardia e a alta Idade Média, tendo como personagem central Carlos Magno, sagrado imperador pelo papa que assumiu a missão de submeter os bárbaros à civilização romana. A morte de Carlos Magno é o que principia a segunda parte, compreendida até ao ano 1000, momento em que se afirma a cristandade. A terceira parte estuda a dita fase mais luminosa da Idade Média, denominada na obra como “o apogeu medieval” – abarca o momento de aceleração do desenvolvimento urbano e das universidades, que então cresciam com a participação dos teólogos. A quarta parte, intitulada “Perturbações e mutações”, enfocar o período de transição para o Renascimento, período em que começaram as revoltas campesinas conhecidas por jacqueries e as primeiras movimentações que anunciam a Reforma Protestante vindoura. A quinta e última parte comenta os “Personagens imaginários”, as figuras míticas, como a Virgem Maria, o rei Arthur, Robin Hood, Satã – para Le Goff, em uma sociedade “o imaginário tem seguramente tanta importância e eficácia quanto as condições reais da vida e do pensamento”.

 

 

Umberto Eco, "Arte e beleza na estética medieval"

Umberto Eco, “Arte e beleza na estética medieval”

Umberto Eco, no ensaio Arte e beleza na estética medieval, desenvolve uma riquíssima reflexão sobre a estética durante o período compreendido entre os séculos VI e XV. Baseado em textos filosóficos e literários, o crítico italiano corrige a falsa e difundida noção da ausência de sensibilidade estética no universo medieval, através de um retrato da época.

Eco dialoga com o texto de Huizinga, concorda com sua análise de que os medievais convertiam imediatamente o sentimento do Belo em pura alegria de viver, coincidente com o bom e o verdadeiro. Para o pensamento medieval, Eco mostra, a verdade e a bondade são valores metafísicos inerentes ao ser.

A Idade Média, para ele, mais que uma idade das trevas, foi uma era de contrastes: por um lado, época de crises políticas, religiosas, demográficas e mesmo lingüísticas; por outro, séculos de nascimento das nações modernas, de revolução dos transportes marítimos, das técnicas agrícolas, dos procedimentos artesanais.

Ponto de partida de uma reflexão sobre a estética por trás de todo um milênio — do século VI ao século XV. Não apenas no mundo das artes, como no âmbito da ciência e da teologia. Com a perspicácia e erudição de sempre, mais a ajuda de textos filosóficos e literários, Eco analisa como o mundo medieval respondia às interrogações sobre os fenômenos estéticos, no âmbito da própria cultura e visão de mundo. Como os medievais convertiam o belo em um valor: a beleza devia coincidir com a bondade e o divino.

Em seu estudo, Eco contempla a beleza, a arte, suas relações com a moral, a função do artista, as noções do agradável, de ornamentos, de estilos, os juízos de gosto. De Boécio a Eckhart, de sutis distinções conceituais a sínteses sociológicas e históricas, sua investigação sobre as ideias estéticas medievais é densa e elegante.

O livro foi publicado originalmente em 1959, como parte de uma tetralogia sobre a história da estética.

 

 

 

A medievalidade de alguns artistas e intelectuais renascentistas, bem como renascimentos que teriam ocorrido já na Idade Média são notados e debatidos por diversos historiadores. Peter Burke menciona o amplo processo de continuidades e descontinuidades, analisando o mito do Renascimento no contexto das discussões historiográficas sobre a “crise das grandes narrativas”.

Na revista Serrote n° 16, o professor Lorenzo Mammì dedicou o belo artigo “Os caminhos para o Renascimento” à questão, a partir de uma leitura de O outono da Idade Média, de Huizinga – parte de nosso trilho, aqui, saiu de suas indicações.

 

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