Literatura

De Michael Jackson a Pietá

4 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Em A Calma dos Dias, lançado em março pela Companhia das Letras, Rodrigo Naves mantém aspectos elogiados do seu trabalho ficcional em O filantropo, como a prosa concisa aliada a conclusões ácidas e lúcidas. A multiplicidade de gêneros, aqui, é trabalhada de maneira ainda mais rica. Poesia, conto e ensaio se entrelaçam formando um tecido que busca sentido comum no inusitado, de maneira ao mesmo tempo crítica e lírica, permeada por uma aspereza nova, que aqui invade a prosa de Naves. A calma dos dias coloca em confronto a resistência e a fluidez da matéria num mundo desencantado.

O livro interpõe ensaios sobre a situação cultural contemporânea — reality shows, Gisele Bündchen, Michael Jackson — a pequenas ficções, perfis e obituários de artistas e amigos, análises de obras e indagações filosóficas. Um dos melhores perfis do livro é o dedicado ao poeta José Paulo Paes (1926-1998), de quem Rodrigo Naves foi grande amigo. Nele, o autor evoca Merleau-Ponty – que dizia, a respeito de Cézanne, que “o melhor de um artista deve ser buscado em sua obra”, resistindo à ideia de cruzar biografia e trabalho – e o contesta, comentando que são “neuróticos renitentes” como Cézanne que entendem de salvação.

Em entrevista, Rodrigo Naves certa vez disse: “A melhor frase que eu conheço é aquela do Van Gogh: “O moinho não mais existe mas o vento permanece”. O que significa isso? A gente não criou uma forma que dê conta do vento. Não sabemos qual é o vento. O vento entendido como energia, como experiência social, relação entre as classes, como você quiser. Eu acho que a arte pode servir como moinho, tentar entender um pouco qual é a nossa experiência”. Em A calma dos dias, a metáfora que deu título ao seu O vento e o moinho, reaparece: “temo ser hoje quase inaudível o rumor que moveu tantos engenhos”.

Segundo Mario Sergio Conti, em artigo escrito para o jornal O Globo, em A calma dos dias, “o crítico e o ficcionista estão banhados pelo sol negro da melancolia. As artes plásticas sucumbem ao mercado e ao dinheiro, quando não à teorização que oblitera obras e homens. A arte se torna tão rarefeita que o crítico perde o objeto, deixa de ter o que analisar. Já a vida passa cada vez mais rápido”.

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Trecho:

Teoria do cão

Jacobina era um mendigo do bairro a quem me afeiçoara havia muitos anos. Todos os dias trocávamos algumas palavras: conselhos recíprocos, novidades, palpites sobre o tempo. Dava-lhe dinheiro com regularidade, que ele aceitava quase como o pagamento de uma dívida. Ele vivia com Coronel, um vira-lata em cuja pelagem indefinida convergiam muitas linhagens de cães. O bicho não era dado a expansões, mas aos poucos cedeu a meus afagos. Jacobina e Coronel passavam o tempo todo juntos. À noite dormiam colados um ao outro, em meio ao ninho de papelão e cobertores baratos que os agasalhava.

A morte de Jacobina não me deixou escolha: levei Coronel para casa e procurei ocupar o lugar que o mendigo tivera em sua vida

O animal recusou-se terminantemente a dormir na área de serviço do apartamento: arranhava a porta, gania. Resolvi então arrumar sua cama ao pé da minha. Por uns dias ele aceitou a nova situação. Um dia, despertei com o cachorro a meu lado. E não houve jeito de reconduzi-lo ao lugar anterior.

O pior, porém, ainda estava por vir. Em pouco tempo Coronel teimou em voltar para o chão e não sossegou enquanto não lhe fizesse companhia. Soube responder estoicamente às novas circunstâncias e em poucos dias já me sentia à vontade na acomodação precária.

Poucos meses depois comecei a perceber mudanças no comportamento de meu companheiro. Sentia-o intranquilo, como se os limites de meu apartamento o oprimissem. O animal não tinha sossego e rodava pelos ambientes à procura de uma saída. Uma manhã, ao retornarmos do passeio matinal, mal pude contê-lo. Coronel queria voltar à rua de todo modo. Tornara-se até violento.

Não foi uma escolha fácil. Por fim cedi a seus apelos. Hoje vivemos sem nada, à mercê da caridade alheia. Tratamos com afeto aqueles que nos ajudam. Não me arrependo um só momento pela decisão tomada. Entendo o ar de compaixão dos homens e mulheres que zelam por nós. E nossas faces maltratadas pelo tempo quase não deixam transparecer o que sentimos por eles.

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A CALMA DOS DIAS

Autor: Rodrigo Naves
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 23,80 (176 págs.)

 

 

 

 

 

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