Uma pesquisa de história cuja investigação começou por uma lembrança da infância. O crime do restaurante chinês, do historiador Boris Fausto, recorre aos arquivos da história e de sua memória pessoal para narrar um dos acontecimentos policiais mais comentados da história paulistana. Ele era ainda menino quando, logo após um animado carnaval de rua, ouviu a rumor que se espalhava pela cidade: um homem negro era acusado de matar o ex-patrão e mais três pessoas com terríveis golpes de pilão.
A escrita de Boris Fausto narra todo o processo policial investigativo com a desenvoltura de um romance.
Ao passo que o enredo lhe serve como princípio argumentativo para discutir alguns temas fundamentais para a historiografia do período. Um deles é a relação entre migrantes, imigrantes e trabalhadores marginalizados numa São Paulo cada vez mais populosa. Outro, a aplicação judicial e policial de doutrinas racistas, que então recebiam o endosso de cientistas de prestígio, e que, Fausto o mostra, ajudaram a incriminar Arias de Oliveira do assassinato brutal ocorrido na quarta-feira de cinzas: num restaurante chinês, localizado na rua Wenceslau Braz, nº 13, quatro pessoas haviam sido brutalmente assassinadas, três delas a golpes de mão de pilão, a outra, por estrangulamento. As vítimas eram Ho-Fung e Maria Akiau, casal dono do restaurante, e seus empregados José Kulikevicius e Severino Lindolfo da Rocha. Arias de Oliveira era um jovem negro do interior, ex-empregado do restaurante.
Fausto comenta também o declínio do carnaval de rua paulistano, seguido pela comoção futebolística que tomou conta da cidade com a participação da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1938.
A maior fonte da reconstituição histórica da cena é a memória do autor, aliada a artigos de jornal que mobilizavam a opinião pública, muitas vezes de maneira sensacionalista.
A narrativa de Fausto mostra o “fio da sensibilidade” que ligava o carnaval, os assassinatos hediondos e a Copa do Mundo. Por meio dele, seria possível até que a figura, antes temida de Arias, terminasse associada à do adorado Leônidas, outro brasileiro negro.
Segundo Wilker Sousa, em introdução a entrevista realizada com Boris Fausto e publicada na revista Cult, o livro é um exemplo da micro-história: “Criada na Itália no final dos anos 1970, a micro-história tornou-se um gênero prestigiado no ocidente. Detendo-se em fatos que ficam à margem de abordagens históricas mais amplas, a micro-história faz do corriqueiro e do fait divers pretextos para uma análise sociocultural relevante. Ao contrário da linguagem acadêmica, esse gênero vale-se de recursos típicos da narrativa ficcional, o que acaba por aproximar a História daquele leitor não iniciado. O mais recente livro do historiador Boris Fausto, O crime do restaurante chinês, constitui um típico exemplo de micro-história”. De acordo com Souza, “A análise e os desdobramentos do crime servem de ponto de partida para o autor discutir outros fatos relevantes da época, como a Copa do Mundo, realizada na França, e as manifestações populares, em especial, o carnaval da São Paulo dos anos 1930. O olhar arguto do historiador permite tecer uma relação ora explícita, ora implícita entre os aspectos socioculturais daquele período da história nacional e a tragédia do restaurante chinês. Racismo, relações multiculturais, descompasso entre pobreza e desenvolvimento tecnológico, jornalismo, futebol e carnaval, um amálgama de fatores socioculturais sob o crivo histórico de Boris Fausto”. Na entrevista em questão, Boris Fausto diz, quando questionado sobre a maneira como seu livro busca a premissa de extrair, de fatos aparentemente corriqueiros, uma dimensão social relevante: “Primeiro porque o crime é importante. Seja pela repercussão que teve na cidade, seja pelo vulto que essa questão teve. Há também uma contraposição ao presente. Hoje vários crimes se sucedem uns após os outros, sem grande repercussão. Por outro lado, o crime é uma possibilidade não é um pretexto. É uma possibilidade de se fazer uma introdução no sistema Judiciário Criminal e mostrar não só a existência do racismo – isso é conhecido –, mas como ele é um fenômeno mais complexo do que às vezes se imagina. É também uma oportunidade para explorar um fragmento, um ano da vida da cidade marcado por uma cena de futebol e mobilização popular”. Para o historiador, o tema em questão “requeria um tipo de narrativa aproximada do romance policial e até da linguagem cinematográfica. A cena inicial [na qual o cozinheiro Pedro Adukas chega ao trabalho e se depara com as quatro vítimas] tem uma marca minha de leitor de romance policial e de quem gosta de cinema desde os doze anos”.
A cena em questão é assim narrada por Boris Fausto: “Como fazia invariavelmente todos os dias, o lituano Pedro Adukas, cozinheiro de um restaurante chinês no centro de São Paulo, chegou bem cedo ao trabalho, por volta das seis e quarenta e cinco da manhã. Era o dia 2 de março de 1938. O restaurante ficava na rua Wenceslau Braz, próximo à praça da Sé, que desce em acentuado declive até alcançar a ladeira do Carmo. Em 1938, daquele ponto do Carmo ainda era possível ver, ao longe, a silhueta das fábricas dos bairros mistos, industriais e residenciais, do Brás e da Mooca, que deitavam fumaça no horizonte.
“Naquele dia, a cidade ainda dormia ou ia se levantando lentamente. Apesar de São Paulo se vangloriar de ser o maior centro industrial da América Latina, como anunciavam seus vermelhos bondes “camarão”, o silêncio e a modorra se explicavam: não se tratava de uma quarta-feira qualquer, e sim de uma Quarta-Feira de Cinzas, após três dias de carnaval”.
O livro foi publicado em 2009. A Companhia das Letras disponibiliza trecho para leitura.
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BREVE EXPLICAÇÃO
Este livro narra a história do crime do restaurante chinês, que abalou São Paulo em 1938, com repercussões nos anos seguintes. Considero o crime – na verdade uma chacina – o núcleo da narrativa, que se desdobra em outras, em especial o carnaval e a Copa do Mundo daquele ano. Não se trata de uma escolha feita ao acaso: entre o crime e o carnaval há uma relação explícita; entre o crime e a Copa há uma relação mais sutil, tecida com fios tênues.
O livro se situa numa forma de fazer história que seus autores mais conhecidos denominaram de micro-história. A partir de historiadores italianos como Carlo Ginzburg e Giovanni Levi e do francês Le Roy Ladurie, desde meados da década de 1970, a micro-história tornou-se um gênero histórico muito prestigioso no mundo ocidental. Seus objetivos básicos podem ser assim resumidos: a) reduzir a escala de observação do historiador, a fim de apreciar ações humanas e significados que passam despercebidos quando se lida com grandes quadros; b) concentrar essa escala em pessoas comuns e não em grandes personagens, buscando ouvir sua voz; c) extrair de fatos aparentemente corriqueiros uma dimensão sociocultural relevante; d) apelar para o recurso da narrativa, ao contrário da história das grandes estruturas, sem entretanto confundir-se – dado seu conteúdo e seu estilo – com as narrativas tradicionais, predominantes no século XIX; e) situar-se no terreno da história, o que significa apoiar-se nas fontes, delimitando-se assim, claramente, a obra ficcional.
Com suas peculiaridades, O crime do restaurante chinês se enquadra na linha da micro-história, por seu enfoque e suas preocupações. A escala de observação é reduzida, como indica a escolha do tema. Muitos personagens são pessoas comuns, invisíveis no plano dos grandes acontecimentos, e que não figuram na galeria dos “grandes personagens da nossa história”. No entanto, suas vidas e suas interações com um amplo contexto social surgem como chaves de entendimento de ângulos ignorados desse contexto, como se fossem fachos de luz, capazes de alcançar lugares escuros de uma sala que a luminária do teto não alcança. O estilo preferencial é a narrativa, mas não a narrativa ficcional, pois a trama se apoia em fontes históricas.
Algumas palavras sobre o espaço e o tempo do livro. Ele se situa, como o subtítulo indica, na São Paulo da década de 1930, ou, com maior incidência, nos anos que vão de 1938 a 1942. Mesmo estando ainda longe da megalópole dos dias atuais, nessa época São Paulo já é um grande centro, com mais de 1 milhão de habitantes. Nesse tecido urbano, em que os vestígios do passado não haviam desaparecido, os meios de informação estavam bastante disseminados, pela via dos jornais e das emissoras de rádio, que alcançavam não só a classe média como setores das classes populares.
A cidade se singularizava pela variedade étnica, em grande medida resultante da imigração em massa de fins do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Em meados dos anos 1930, nela conviviam imigrantes e seus descendentes, velhos paulistanos em crescente minoria e migrantes internos que começavam a chegar em grande número, de Minas Gerais e do Nordeste.
Ao mesmo tempo, consolidara-se na cidade uma opinião pública, atenta aos acontecimentos, capaz de assumir posições ideológicas, participante ativa de movimentos políticos, dentre os quais a revolução de 1932 foi o episódio mais significativo. Desde meados dos anos 1920, São Paulo se orgulhava de sua “altivez”, da ética do trabalho imperante na sociedade, do impetuoso crescimento sintetizado pelo dístico ostentado em seus bondes fechados: “São Paulo é o maior centro industrial da América Latina”.
Em alguns momentos, a narrativa do livro deita o olhar sobre o mundo dos bairros, como o Brás, a Lapa, a Vila Esperança. Mas os personagens da história movem-se, preferencialmente, na área do chamado Centro Velho, onde estavam instaladas as principais repartições públicas, a sede dos jornais, as lojas elegantes, os restaurantes, os cinemas e teatros, os escritórios de advocacia. É para o centro que as pessoas acorriam em busca de quitar compromissos, de divertir-se, de fazer compras ou, simplesmente, de passar o tempo, misturando-se ao fluxo das ruas.
Abandono essa breve referência a São Paulo de outros tempos e volto ao tema da micro-história, introduzindo uma observação final. Entre os riscos em que o gênero tem incorrido ao longo dos anos, figura em destaque o de tomar por objeto uma história curiosa, mas irrelevante. Acredito que o livro não incide nesse problema, na medida em que o episódio central é a chave de abertura de caminhos mais amplos, sejam eles, entre outros, o funcionamento do aparelho policial e judiciário, o racismo, a discussão da natureza da criminalidade, do perfil dos infratores etc. De qualquer forma, se o leitor não quiser se deter na questão da relevância, quem sabe, mergulhando na leitura, encontrará o prazer da leitura de uma boa história.
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O CRIME DO RESTAURANTE CHINÊS – CARNAVAL, FUTEBOL E JUSTIÇA NA SÃO PAULO DOS ANOS 30
Autor: Boris Fausto
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 32,90 (264 págs.)