No 25° ano de sua publicação, A imortalidade, de Milan Kundera, acaba de ser reeditado pela Companhia das Letras. O romance, entre personagens reais e fictícios, tece reflexões sobre a sociedade ocidental moderna, seus valores sentimentalistas, os conflitos entre essência e imagem, entre realidade e aparência, o culto à fama e à celebridade: a busca pela imortalidade. A prosa de Kundera, mordaz e forte, aqui, é verdadeiramente instigante em sua investigação acerca das possibilidades da existência.
Em dado momento do livro, um diálogo ficcional é travado entre Goethe e Hemingway. O escritor americano diz “Em vez de ler meus livros, escrevem livros sobre mim”, ao que o alemão lhe responde: “A imortalidade é um eterno processo”. As personalidades literárias, escritores que, apesar de mortos, são imortais são fundamento para a reflexão de Kundera: “A morte e a imortalidade formam uma dupla indivisível, mais bela que Marx e Engels, que Romeu e Julieta, que Laurel e Hardy”.
O livro é composto por diversas tramas, que nem sempre dialogam entre si. Através delas, o autor parece buscar diferenciar sobretudo a essência da imagem na composição do indivíduo, do “eu” essente e aparente. Sendo, contudo, a essência, mortal, a imagem pode não sê-lo.
De acordo com a análise da crítica portuguesa Cláudia de Sousa Dias, “de uma recriação da construção ficcional a partir de um dado real – um rosto ou um gesto a ele associado. Por exemplo, um movimento executado por uma senhora que, já no limiar da velhice, desfere um jovial gesto de despedida ao jovem professor de ginástica, como se fosse uma adolescente. O gesto como signo não verbal, tradutor da essência de sedução, de eterno feminino que nunca envelhece passa, incólume, através das modas que se sucedem ao longo das décadas. Desperta, no Autor, todo um conjunto de reflexões acerca da universalidade e intemporalidade da linguagem não verbal quando se trata de transmitir uma mensagem”. Segundo Dias, para “Milan Kundera, o desejo de imortalidade, de permanecer na memória colectiva depois do desaparecimento do mundo terreno, condiciona todos os gestos da humanidade, desde o desejo de fazer-se notar, através da emissão de opiniões marcadas por um fanatismo militante, ao uso do ruído – visual ou auditivo – para chamar a atenção e fixar-se na memória dos demais”.
Segundo Vitor Costa, professor de filosofia, em ensaio sobre o romance, nas personagens de Kundera “não são suas características, mas suas possibilidades que nos encantam”. Para Costa, “Kundera compõe personagens nebulosos e flexíveis, que às vezes desempenham ações contrárias em mundos possíveis paralelos e/ou oníricos. Isso porque esse pensador (pensador, sim!) tcheco não acha que a moral de um romance esteja enraizada na história que ela conta, mas no sentido explorado pelas diversas linhas que podem compô-lo”.
A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.
A tradução é de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Anna Lucia Moojen de Andrada.
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Caminho: faixa de terra sobra a qual se anda a pé. A estrada distingue-se do caminho não só por ser percorrida de automóvel, mas também por ser uma simples linha ligando um ponto a outro. A estrada não tem em si própria qualquer sentido; só têm sentido os dois pontos que ela liga. O caminho é uma homenagem ao espaço. Cada trecho do caminho é em si próprio dotado de um sentido e convida-nos a uma pausa. A estrada é uma desvalorização triunfal do espaço, que hoje não passa de um entrave aos movimentos do homem, de uma perda de tempo.
Antes ainda de desaparecerem da paisagem, os caminhos desapareceram da alma humana: o homem já não sente o desejo de caminhar e de extrair disso um prazer. E também a sua vida ele já não vê como um caminho, mas como uma estrada: como uma linha conduzindo de uma etapa à seguinte, do posto de capitão ao posto de general, do estatuto de esposa ao estatuto de viúva. O tempo de viver reduziu-se a um simples obstáculo que é preciso ultrapassar a uma velocidade sempre crescente.
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Autor: Milan Kundera
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 38,43 (408 págs.)