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Transes carnavalescos

13 fevereiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

O belo livro Antropologia da face gloriosa traz uma seleção de 161 fotos da famosa série de Arthur Omar de retratos feitos durante o carnaval carioca. Publicado em 2003, o livro reúne fotografias realizadas entre 1973 e 1996 e conta com um ensaio escrito pela crítica de arte Ivana Bentes, segundo quem, “Em “Antropologia”, o rosto se torna um campo de batalhas transcendentais”. O trabalho de Omar, aqui, torna o carnaval metafórico e os, retratos, tornam-se máscaras vivas em um teatro por um lado, trágico, por outro, extasiante.

As fotografias interpretam o delírio carnavalesco brasileiro, em instantâneos que capturam o transe nas ruas e cujo trabalho de edição lhes confere força simbólica e estética.

Segundo o autor, a “antropologia da face gloriosa é um projeto de exploração exaustiva do rosto humano, em seu transe carnavalesco. […] São faces que vivem atitudes de passagem, correspondendo a sentimentos que estão acima do normal, evocações de períodos míticos e selvagens”. Trata-se de uma antropologia “debruçada sobre o bárbaro, o difuso, o transversal da nossa realidade de brasileiros. Mas como são gloriosos (os sentimentos), é necessária uma ciência ligeiramente diferente do normal para abordá-los. Daí a fotografia”. Sobre a técnica utilizada no trabalho com as fotografias propriamente ditas, Omar elucida: “Nesta antropologia, quanto maior é o trabalho técnico de dilaceração dos contrastes, explosão da granulação, recorte e superposição das camadas, reenquadramento sucessivo através de recopiagens e aberração de espaço circundante, tanto mais arcaica é a música que se faz ouvir através do enigma visual resultante.”

Em crítica publicada no jornal Folha de São Paulo, Marcelo Coelho analisa: “Esse livro é genial, é uma obra de arte densa, misteriosa, abissal. Vemos aí o “povo brasileiro” a partir de uma ótica extrema, apavorante e demoníaca. Não é mais o povo de “Central do Brasil”, capaz de bons momentos, de solidariedade espontânea e construtiva. A deformidade, o travestismo, a sedução canalha, a maquiagem carregada, o monstruoso: tudo aparece num registro incompreensível para nós, ameaçador, completo e radical. O “povo”, aqui, é aquilo que é realmente: não o compreendemos, não somos iguais a ele, tem em si tanto de ameaça quanto de pacificação”. Para Coelho, o carnaval de Omar traz a imagem de cadáveres ressuscitados num Juízo Final, retrato do “êxtase demoníaco do Carnaval”. Segundo o crítico, são fotografias que “projetam uma revolução; algo de negro, de turvo, de irracional, de xamânico e de justo, de incompreensível e aterrorizante para nós. Arthur Omar mexe mais fundo, imerge num território sem lágrimas, só de suor, esgar, estranheza, frenesi sem correspondência com nosso coração doméstico”.

Álvaro Machado, em artigo sobre o livro, também publicado na Folha de São Paulo, pontua que “o êxtase espiritual partilha da mesma natureza do transe dionisíaco, produzido por “embriaguez, fascinação, paixão, comoção, desvario ou frenesi”, no quadro da manifestação carnavalesca. Os títulos acoplados às imagens sublinham o paradoxo: “Sem o Mestre É Impossível Chegar Lá”, diz a linha abaixo do close de integrante de ala de índios; “Pintado para Pensar” é a sugestão sob menino mestiço pintado como nativo sul-americano; ou, ao lado de travesti empastelado de maquiagem, “Deus Pode Ser um Ator”, título que remete ao teatro ritual-extático de Antonin Artaud”.

Adolfo Montejo Navas, em artigo publicado na revista internacional de arte Lapíz, interpreta o trabalho do artista como contra-corrente; segundo ele, em tradução livre, Arthur Omar: “[…] vem insistindo desde os anos 70/80 em um conceito de trabalho cuja densa simbologia ajuda a resituar a razão lírica no eixo da atividade plástica”, mantendo-se, ainda assim, “dentro dos limites de uma estética romântica contemporânea, aquela que buscaria casar a sensibilidade com o pensamento e não eliminar o enquadramento imaginativo e espiritual das emoções”.

Arthur Omar tem uma atuação abrangente no cenário intelectual e artístico brasileiro. Formado em antropologia e etnografia, desenvolveu uma reflexão inovadora na antropologia visual, quer através de seus documentários epistemológicos, nos anos setenta, quer em seus livros, sobretudo os que tematizam o Carnaval e a Amazônia, nos quais a investigação científica amalgama-se à intensificação estética do material de estudo. Omar trabalha com cinema e vídeo, fotografia, instalações, música, poesia, desenho, além de ensaios e reflexões teóricas sobre o processo de criação e a natureza da imagem.

 

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“[…] uma face gloriosa, a reagir por sim-patia ultra-veloz, vibrando no mesmo registro que o seu objeto. O ato fotográfico como gnose. Uma foto-gnose.”

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ANTROPLOGIA DA FACE GLORIOSA

Autor: Arthur Omar
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 103,60 (240 págs.)

 

 

 

 

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