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Etnopoesia

18 fevereiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
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fotografia de Maureen Bisilliat

O fim de tarde de uma alma com fome é um poema épico de Sérgio Medeiros. O poeta buscou inspiração no teatro nô e em lendas indígenas. O poema desenvolve três variações sobre um mesmo tema, três versões básicas de uma mesma cena: um mito oral, sem origem definida e em constante transformação. Seu resultado é contextualmente interessante e liricamente profundo e rico.

Lúcia Sá, autora do livro Literaturas da floresta [Eduerj, 2013] [i], especialista em literatura comparada e professora de estudos brasileiros na Universidade de Manchester, aponta: “Já nas instruções de leitura, aprendemos que cada ato é uma versão (da mesma história?), e que os atos podem ser lidos em ordens distintas. E não é só isso: o leitor pode optar por substituir uma ou duas das versões por outros textos, entre os quais o Popul Vuh maia-quiché e o volume de clássicos amazonenses Makunaíma e Jurupari”. Segundo sua análise, por isso o poema “compõe-se e recompõe-se nesse diálogo com obras distintas, onde o motivo comum é a cultura ameríndia na sua relação com as línguas e as culturas americanas. Dos vários textos que fazem parte desse diálogo intertextual, o mais importante é a narrativa pemon “Como os venenos azá e ineg, para matar peixes, vieram ao mundo”, de Makunaíma e Jurupari”. Lúcia Sá explica que o casal que dialoga ao longo do poema são personagens retirados desse mito; são eles “a anta, isto é, a velha, ou alma canibal, e o humano – neste caso um soldado que se separou do seu pelotão. Como no conto pemon, o diálogo entre esses seres de espécies distintas é marcado por diferenças perspectivistas: o que para ela é uma cobra, para ele é um fogão; o que para ela são pérolas, para ele são carrapatos, e assim por diante”. A professora, dialogando com a antropologia, interpreta que, se por um lado, “o perspectivismo, para Viveiros de Castro, se localiza no mundo mesmo das diferentes pessoas (pessoa anta ou pessoa humana), aqui ele é uma questão de língua. A poesia de Sérgio Medeiros surge precisamente dos jogos de entendimento e desentendimento entre essas duas línguas: a da anta (a velha ancestral indígena) e a do soldado (em outras palavras, o estado-nação) matricida”.

Ricardo Corona, em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, diz: “Sérgio Medeiros tem colaborado de maneira consistente para esticar a linha que aproxima a poesia brasileira do conceito de etnopoesia. Isto desde os anos 1990, quando visitou os bororos, “os maiores e os mais bem-feitos índios do Brasil”, nas palavras de Lévi-Strauss. Desta experiência-sintoma com os bororos, Medeiros nos deu a coletânea Makunaíma e Jurupari: Cosmogonias Amazônicas (2002) e não parou mais. É um dos tradutores, em parceria com Gordon Brotherston, do poema maia-quiché Popol Vuh (Séc. XVI)”.

Interessado nos mitos indígenas, Medeiros defendeu sua tese de doutorado na USP sobre os mitos Jê, em 1995; em 2001, realizou pesquisa de pós-doutorado na Stanford University, Califórnia, sobre o poema maia-quiché Popol Vuh [Iluminuras, 2007], que traduziu, em parceria com Gordon Brotherston.

 

 

 

O FIM DE TARDE DE UMA ALMA COM FOME

Autor: Sérgio Medeiros
Editora: Iluminuras
Preço: R$ 19,60 (64 págs.)

 

 

 

 

 

[i] O livro Literaturas da floresta, de Lúcia Sá, foi motivo de se correr Matraca n’O Benedito, em outubro de 2013. Confira aqui.

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