Crítica Literária

Morte da tragédia, crise da cultura

8 julho, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Frederic Leighton, “Electra”

“O que eu identifico como ‘tragédia’ em sentido radical é a representação dramática ou, mais precisamente, a prova dramática de uma visão da realidade na qual o homem é levado a ser um visitante indesejável no mundo”.

Composto de início como tese de doutoramento a ser defendida na Universidade de Oxford, A Morte da Tragédia, de George Steiner, trabalho foi a princípio, tragicomicamente, condenado, pois sua redação não atendia às exigências de uma boa dissertação acadêmica. Mais tarde, não só o ensaísta tornou-se professor na referida universidade, como este escrito transformou-se em obra de referência na crítica e nos estudos sobre o destino da tragédia

Steiner, notório por seu humor e ironia, apura neste ensaio os sentidos para ler e escutar inclusive os detalhes lexicais e tonais e identificá-los como sintomas do declínio que busca descrever. Assim, na esfera da linguagem, ele interpreta o fenômeno trágico como expressão determinada não pela vida, mas sim por uma ideia que resume uma visão de mundo. A tragédia é, nos termos do próprio autor, uma “metafísica do desespero”. 

Segundo análise de Eduardo Sterzi, já citada em outra Matraca, o leitor passa por um estranhamento frente ao conjunto da obra de Steiner, que talvez venha da constatação de que há um páthos e uma ênfase que “estão a serviço de uma obstinada disposição elegíaca: todos os seus escritos são, no fundo, lamentos pela perda de alguns padrões exemplares de civilização”, padrões que, como analisa Sterzi, talvez sejam ideais: “Uma idealização desse tipo está na base do argumento de A Morte da Tragédia, uma idealização que, como demonstra o próprio Steiner, não é apenas sua, mas se confunde com a própria formação da cultura literária moderna a partir de fins da Idade Média: a idéia de que os gregos – com seus mitos, com seu teatro, com sua filosofia – teriam esgotado os campos do pensável e do representável, traçando de uma vez por todas os círculos dentro dos quais se moveriam a imaginação e a criatividade futuras”. Sterzi pontua: “[…] o livro, cujo título não oculta a ambição de medir-se com Nietzsche, parte de um esforço para definir rigorosamente a tragédia como forma específica. “Todos os homens”, constata Steiner, “têm consciência da tragédia na vida. Mas a tragédia como uma forma de drama não é universal.” O drama baseado na “representação do sofrimento e heroísmo pessoal” irrompe num terreno bem circunscrito: “Essa idéia e a visão do homem que ela implica são gregas. E quase até o momento de seu declínio, as formas trágicas são helênicas”. O verdadeiro tragediógrafo é o regente de uma negatividade sem freios: “As tragédias terminam mal. O personagem trágico é rompido por forças que não podem ser completamente compreendidas nem superadas pela prudência racional”. Temos drama sério – mas não tragédia – quando a catástrofe comporta alguma solução razoável; como conclui ironicamente Steiner: “Por mais flexíveis que fossem as leis do divórcio, não poderiam alterar o destino de Agamêmnon; a psiquiatria social não é resposta para Édipo. Mas relações econômicas mais saudáveis ou melhor alinhadas podem resolver algumas das graves crises nos dramas de Ibsen”. E é justamente porque o sofrimento do herói não comporta reparações que a “percepção terrível e dura da vida humana” inerente à tragédia revela-se uma afirmação extrema da dignidade do homem: seja em Sófocles, Shakespeare ou Racine, os desenlaces guardam uma “fusão de dor e êxtase” em que o “lamento pela queda do homem” faz-se indistinto do “regozijo pela ressurreição de seu espírito”.

Para Steiner, a morte da tragédia é sintoma de crise da cultura. Sua tese é que há tragédia sempre que um indivíduo é subjugado por forças externas que não pode compreender nem combater, a tragédia inicia-se de uma catástrofe. Associada à catástrofe deve haver uma culpa, que justifica os eventos trágicos como punições – expiações que resguardam a dignidade trágica e enobrecem o castigado.

Segundo João Moita, em artigo publicado na revista Zunái, este enobrecimento do homem que é objeto da vingança dos deuses, “é a Catarse que Aristóteles reservou apenas ao espectador da tragédia e que Steiner resolve assim em favor do herói trágico. Vemos deste modo que a tragédia está directamente relacionada na sua origem grega com a ordem subterrânea que governa todas as coisas e que os homens enunciam sob a forma de um sistema simbólico, único meio de se referirem ao que não pode ser nomeado porque incognoscível. Percebemos assim a tese da morte da tragédia que Steiner defende se compreendermos a passagem da subjugação do homem à ordem orgânica, para a subjugação do homem à ordem artificial que a Revolução Industrial e o sistema capitalista introduzem na época iluminista da crença na razão e sua faculdade de compreender o mundo e o recriar à sua maneira: “the decline of tragedy is inseparably related to the decline of the organic world view and of its attendant context of mitological, symbolic, and ritual reference”. Sem mitologia não há tragédia. Quer isto dizer que sem a assunção de um ou de um conjunto de valores, de uma referência extra-terrena ou, se quisermos, transcendente que atribua significado à realidade, não há tragédia. […] A tragédia morre, pois, no momento em que o homem toma as rédeas do seu destino, decidido a não mais se deixar subjugar pela ordem cósmica do mundo. O dia da ascensão do homem é o dia da queda dos deuses e, com eles, da tragédia. Quando o homem é ilibado da culpa do pecado original, termina a tragédia. O arauto simbólico desse declínio é Jean Jacques Rousseau, ao veicular com as suas teses a inocência essencial do ser humano. Depois de Rousseau, um homem não é mais responsável pelos seus erros (e, por consequência, pelos seus actos, premissa cujas consequências Rousseau não soube calcular), dado que a sua posição social e a sua educação determinam a sua identidade. Uma sociedade boa não produziria homens maus: o homem é portanto intrinsecamente bom, a sociedade é que o corrompe a posteriori. Não cabe aqui o sentimento de culpa individual (donde segue que também não pode caber o sentimento de culpa colectiva…). “And because the individual is not wholly responsible, he cannot be wholly damn”.

 

A MORTE DA TRAGÉDIA

Autor: George Steiner
Editora: Perspectiva
Preço: R$ 32,90 (220 págs.)

 

 

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