“Escrevemos para que o mundo não escrito possa exprimir-se por meio de nós” – Italo Calvino.
A coletânea de artigos, enrevistas e conferências Mundo escrito e mundo não escrito, de Italo Calvino, acaba de ser lançada no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Maurício Santana Dias. Seus temas giram em torno de questões levantadas pelas relações entre vanguarda e tradição, de reflexões sobre a leitura, a escrita e a tradução, de comentários sobre a forma do romance: em suma, investigações sobre os significados da experiência literária. A delimitação movediça entre o mundo escrito e o não escrito marca um limite, tênue, entre o real e o que é possível através da linguagem.
Para Calvino, o mundo escrito, o texto, é em si um universo próprio. Relaciona-se com o mundo não-escrito, mas não de maneira espelhada.
A escritora Claudia Lage, em artigo publicado no jornal Rascunho, conta uma anedota da vida do escritor que muito elucida a relação de expressão do mundo não escrito através da criação literária: “É conhecido o episódio em que o jovem e autor estreante Italo Calvino abafou por anos em sua mente a voz que suplicava para ele escrever uma história maluca passada na Idade Média na qual um visconde era partido ao meio por uma bala de canhão e assim mesmo partido cada metade começava a vagar pelo mundo, cada uma com uma personalidade, uma parte boa, a outra má, e as duas insuportáveis. Calvino preferiu, ao invés de escrever essa história, ceder aos apelos de seu tempo e dos intelectuais da época, que saudavam e abriam generosamente espaço em periódicos e jornais a livros de teor político, de temática socialista. […] Calvino publicou o livro com a temática exaltada pelos intelectuais contemporâneos esperando boa receptividade e elogios, mas a crítica positiva não foi unânime. […] Foi um amigo, também escritor, distante da política e da academia, que veio em seu socorro. Após uma conversa angustiada, confessou a Calvino que achou seu livro monocórdio e chato. […] Calvino, arrasado, escutou novamente a voz que invadia sua mente contando uma história de outros tempos, com personagens e situações que extrapolavam a realidade e a verossimilhança. Vencido, deixou-se enfim levar por essa voz, que, percebeu depois, não lhe era desconhecida, muito menos externa ao seu universo pessoal. Não lhe vinha do lado de fora, como as opiniões e os ditames dos intelectuais, políticos e acadêmicos de literatura da sua época. Vinha lá de dentro, de um lugar impreciso, mas firme em sua inquietude e maneira de mostrar e visualizar o mundo”. Lage analisa: “Enquanto a maior parte dos escritores de seu tempo buscava escrever uma representação da realidade, Calvino se direcionava para o caminho oposto. Não queria passar a impressão de que, ao ler seus livros, lia-se a vida. Queria que se fosse lida a vida escrita. Queria a consciência de que se lia um livro, uma história de ficção erguida pelas palavras e pelo jogo literário”.
Em artigo apresentado no Simpósio de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia, Lilian Rotta interpreta que, para Calvino, “é no “mundo escrito” que palavra está despida de suas camadas de significação e, portanto, livre da saturação de sentidos que, num processo histórico, lhe foram atribuídos. É, portanto, nesse mundo que o leitor poderá libertar-se das algemas do convencional, desenvolvendo uma percepção estética, um olhar mais livre que, na sua apreensão significativa do mundo, procura encontrar novos ângulos de interpretação e produzir novos sentidos para a configuração de outras realidades”.
Segundo Maria Elisa Rodrigues Moreira, em ensaio publicado na revista de poesia e debates Zúnai, é “no lugar de dispersão, de fluxo e trocas constantes, no “entre” saberes – que é sempre um espaço deslizante, dinâmico, mutável e poroso – que se situa o literário em Calvino”. Para Moreira, ao construir “suas narrativas a partir de certa estilização dos mesmos e das tramas que os envolviam, copiar o mundo não-escrito no traço da escrita não foi característica nem intenção da literatura produzida por Italo Calvino. Em seus ensaios e ficções, o espaço do literário, que é o do mundo escrito, aparece com uma delimitação muito precisa, ainda que não fixa nem rígida. A mobilidade constante dessa posição fronteiriça em relação aos campos do saber equivale, no plano discursivo, a uma necessidade também constante de distinção entre o mundo não-escrito – ‘este que chamamos atualmente de mundo, fundamentado em três dimensões e cinco sentidos, povoado por 4 bilhões de nossos semelhantes’ – e o mundo escrito – ‘um mundo feito de linhas horizontais, onde palavras seguem palavras, uma de cada vez, e cada frase e cada parágrafo ocupa seu lugar estipulado’” – a citação de Calvino é do texto “A palavra escrita e a não-escrita”, publicado no Brasil em Usos e Abusos da História Oral [Editora da FGV, 2000].
Como analisa Alfonso Berardinelli, autor dos principais textos críticos sobre Calvino, no interessante artigo “Calvino moralista – Ou, como permanecer sãos depois do fim do mundo” [Novos estudos Cebrap, 1999, tradução feita por Maria Betânia Amoroso], “um erro que Calvino com certeza jamais cometeu foi o da ingenuidade de substituir a literatura pela vida. Nele a literatura permanece lucidamente um espaço bem-delimitado, bidimensional, no qual pela arte podem ser criados efeitos perceptivos ilusionistas, terceiras e quartas dimensões e jogos de espelho, mas onde permanece inconcebível que se sofra, que sejamos condenados, tornemo-nos imbecis, loucos ou culpados”.
MUNDO ESCRITO E MUNDO NÃO ESCRITO
Autor: Italo Calvino
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 34,93 (312 págs.)