Literatura

… a nova habitação do meu velho marcador de página

30 maio, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“[…] um caçador de temas, um escritor sucessivamente rejeitado pelas editoras, que passa o tempo desenvolvendo, oralmente, a partir do que quer que visse por perto, histórias complexas para a platéia circunstancial de uma praça da capital. E, naquilo que relata ao narrador acerca de como um redator rejeitara seu texto, é fácil entreouvir o que teria sido dito, mais de uma vez, a Krjijanovski em pessoa:

‘O senhor tem uma pena. Mas uma pena precisa ser contida por uma caneta, e a caneta, pela mão. Seus contos são… bem, como vou dizer – prematuros. Esconda-os. Que esperem”.

Marc Chagall, “Passeio” [1917/18]

O Marcador de Página, de Sigismund Krzyzanowski, foi publicado no Brasil pela primeira vez em 1997, com tradução de Maria Aparecida B. Pereira Soares, pela Editora 34 e, depois de esgotado por tempos, acaba de ganhar uma bela nova edição.

Sua prosa é profunda, marcada por uma variação especial de paradoxos. Suas narrativas adentram as entranhas do absurdo de seu presente – as décadas de 1920 a 1940 -, tendo, como horizonte, um futuro longínquo e improvável. Metaliterário, satírico, por vezes alegórico, sua enorme vocação filosófica e instinto universalista são características fortes em seus contos – comparados a Borges, Kafka, Calvino, Grombrowicz, Swift.

Na orelha do livro, Nelson Ascher diz que as informações sobre este escritor desconhecido, enigmático e instigante são “escassas, imprecisas, não necessariamente confiáveis e difíceis de obter”.

Krzyzanowski nasceu numa família de origem polonesa em 1887, em Kiev, na Ucrânia, que, então, era território do Império Russo. É autor de cinco novelas e seis livros de contos – apenas, porém, duas de suas histórias foram publicadas antes de sua morte. Dentre seus livros, três foram proibidos pela censura soviética quando já estavam a ser publicados. Frente ao crescente terror político comunista, muitas histórias Krzyzanowski permaneceram guardadas.

O crítico Irineu Franco Perpétuo, em artigo escrito ao jornal Folha de São Paulo, contextualiza: “Ausente das obras de referência, Krzyzanowski, ao que parece, nasceu no final do século passado e morreu em meados do nosso. Não sobram fotos ou retratos seus, e quase nada de seu trabalho foi publicado enquanto viveu. ‘O Marcador de Página’ é o nome de um dos seis contos do livro. Datados entre 1926 e 1939, eles têm sabor muito característico da União Soviética dos anos 20. Foi uma época rica e contraditória, em que artistas de vanguarda, como o poeta Vladimir Maiakóvski e o fotógrafo Aleksandr Ródtchenko, apoiavam a insurreição vitoriosa de 1917, querendo levar para as artes a revolução que se operara na sociedade. E, embora enfrentassem dificuldades com a burocracia governamental, voltada para a arte tradicional, que não hesitava em tachá-los de ‘formalistas’ e ‘incompreensíveis para as massas’, ainda conseguiam algum espaço – até que, em 1934, o ‘realismo socialista’ tornou-se obrigatório”. Segundo o crítico, “com sua ficção fantástica, mas com pé no cotidiano, Krzyzanowski reflete estes tempos atribulados, soando contemporâneo do escritor satírico Mikhail Zóschenko e do grupo nonsense de Leningrado (atual São Petersburgo) auto-intitulado ‘oberiuti’. Apontados por Boris Schnaiderman, em ‘Os escombros e o mito, como percursores do teatro do absurdo, os ‘oberiuti’ (de ‘Oberiu – Obedienie realnovo iskusstva’, ou ‘Sociedade da Arte Real’) bem que poderiam ter subscrito a frase ‘em primeiro lugar, é preciso riscar fora a verdade, ninguém precisa dela’, que aparece na originalíssima parábola ‘Dentro da Pupila’ (1927), em um trecho no qual Krzyzanowski parece enunciar alguns de seus princípios estéticos”.

De acordo com a análise do crítico Miguel Conde, conforme artigo publicado em seu blog, vinculado ao jornal O Globo: “O esquecimento, a invisibilidade, a morte em vida são desde cedo seus temas principais: ‘Procurei ele: só vejo costas, uma atrás da outra, todas rígidas e imóveis. Não dava para saber quem era vivo, quem era morto”, escreve em ‘A décima terceira categoria da razão’ (1927), sobre um defunto que vaga insepulto por Moscou. Em sua novela ‘O clube dos assassinos de letras’ (1926, inédita no Brasil), uma sociedade secreta de ex-autores se reúne regularmente para libertar as palavras da ‘tirania da tinta’. A cada encontro, um deles conta uma história que será revisada e comentada oralmente, mas nunca registrada em papel”. Contextualizando-o literariamente, Conde diz: “O tom satírico e fantástico de suas histórias, que às vezes lembra outro escritor nascido na mesma época em Kiev, Mikhail Bulgakov (1891-1940), nada tinha em comum com o entusiasmo revolucionário prescrito pelo realismo socialista. Após receber alguns contos de Krzyzanowski por intermédio de um amigo em comum, Gorki (então considerado o mais importante escritor soviético) sugeriu secamente que eles pareciam saídos do século XIX. Em meados dos anos 1970, o tradutor Vadim Perelmuter encontrou por acaso uma pasta com três mil folhas manuscritas depositadas pela mulher de Krzyzanowski nos arquivos do Estado em Moscou. Em 1989, portanto quase quarenta anos após a morte do escritor, seus primeiros livros seriam finalmente publicados, e logo a crítica perceberia que o ‘atraso’ estético de Krzyzanowski na verdade aproximava sua obra dos momentos mais altos do conto moderno: Poe, Kafka, Borges. Só então o estranho nome polonês começou a deixar a sombra”. Para o crítico, justamente como ocorre nas narrativas kafkanianas, os contos de Krzyzanowski “parecem ao mesmo tempo sugerir e impossibilitar a leitura alegórica, e às vezes ironizam explicitamente o próprio ato de interpretação. Em ‘O cotovelo que não foi mordido’ (1935), o caso de um homem cuja maior ambição na vida é morder o próprio cotovelo leva o sábio professor Kint a propor uma nova doutrina filosófica: ‘objetivando o imordível exteriormente, chegamos à ideia do transcendente: também Kant entendeu isso, mas ele não entendeu que o transcendente é ao mesmo tempo o imanente (manus, mão, consequentemente também cotovelo); o imanente-transcendente está sempre no aqui, extremamente próximo do entendedor, quase que incluído no aparelho perceptor, da mesma forma que o cotovelo está quase ao alcance do esforço abocanhador dos maxilares, porém — ‘perto está teu cotovelo, mas não conseguirás mordê-lo’, e a ‘coisa em si’ — existe em cada um, mas é inatingível’”.

Em outra resenha publicada pela Folha de São Paulo, para o extinto caderno Mais!, o colunista e romancista Bernardo Carvalho brinca que: “por vezes tem-se a impressão, reforçada pela ausência de informações e pela sombra que paira sobre sua biografia, de que talvez ele nunca tenha existido, mas seja uma paródia do ‘típico escritor do Leste’, criada por alguma alma espirituosa. De qualquer jeito, é difícil não conceder à imaginação que deu origem a esses contos a sua parte de humor genial, tanto mais se o próprio autor também for uma invenção -e, no caso, é bom lembrar que, já pelo aspecto metalinguístico e auto-reflexivo dessa prosa, ele se insere com frequência como um personagem de sua própria ficção”. O primeiro conto do livro, “O quadraturin”, diz Carvalho, já “exala, metaforicamente, uma idéia da literatura como saída para uma vida confinada a um espaço exíguo (não apenas o quarto de oito metros quadrados em que vive o herói, mas o mundo autoritário em que circula o próprio escritor), o que se confirma nos contos que se seguem”.

O livro faz parte da Coleção Leste, que acabou por tornar-se célebre entre amantes da literatura em geral. A coleção começou em 1994. A princípio, a ideia não era publicar literatura russa somente, mas autores do leste europeu desconhecidos: literatura húngara, tcheca. O idealizador e coordenador do projeto foi o tradutor e ensaísta Nelson Ascher. Os primeiros autores lançados pela coleção foram os húngaros István Orkény e Dezso Kosztolányi e o tcheco Karel Tchápek.

 

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Trecho:

 

O quadraturin

 

1

Ouviu-se uma batida fraca na porta pelo lado de fora: uma vez. Pausa. De novo – um pouco mais alto e ossudo: duas vezes.

Sem se levantar da cama, Sutúlin espichou, com um gesto costumeiro, a perna na direção do ruído e empurrou a maçaneta da porta com o pé. A porta abriu com força. Na soleira, a cabeça tocando a verga da porta, estava um homem alto, cinzento como a claridade crepuscular que entrava pela janela.

Sutúlin nem teve tempo de tirar os pés da cama e o visitante já havia entrado e fechado sem ruído a porta. Esbarrou com a pasta que trazia embaixo do seu braço longo e simiesco numa parede, depois na outra, e disse:

– É o que eu pensava. Uma caixa de fósforos.

– Como?

– Estou dizendo que seu quarto é uma caixa de fósforos. Quantos metros tem?

– Oito e alguma coisa.

– Pois é isso. Me permite?

Sutúlin não teve tempo de abrir a boca e o visitante já estava sentado na cama, abrindo apressadamente a pasta estufada, de tão cheia. Abaixando a voz, quase num sussurro, o estranho continuou:

– Tenho algo a lhe propor. É o seguinte: eu, ou melhor, nós, produzimos… como direi… bom, fazemos experiências. É mais ou menos isso. Por enquanto é segredo. Não vou esconder: há uma importante firma estrangeira interessada no nosso negócio. O senhor está procurando o interruptor? Não é preciso, não vou me demorar. Mas, como ia dizendo, foi descoberta – por enquanto isso é segredo – uma substância para aumentar a área dos quartos. Não quer ver?

[…]

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O MARCADOR DE PÁGINA

Autor: Sigismund Krzyzanowski
Editora: Editora 34
Preço: R$ 31,50 (160 págs.)


 

 

 

 

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