A desobediência do homem e, como consequência a ela, a perda do Paraíso que habitava. O primeiro motivo de sua desgraça foi a aparição da Serpente, ou melhor dizendo, de Satã, nela personificado; o qual, rebelando-se contra Deus e atraindo a seu partido numerosas legiões de anjos, foi, por ação divina, banido do céu e precipitado, com sua horda, ao profundo abismo.
Eis em linhas gerais o mote do grandioso poema O paraíso perdido, um dos maiores épicos da literatura ocidental, obra do inglês John Milton (1608-1674). O poema acaba de ter uma cuidadosa edição lançada no Brasil pela editora 34. Bilíngue, a edição traz a elogiada tradução do premiado poeta português Daniel Jonas, que segue de perto a versificação e a musicalidade do original. O volume conta ainda com a apresentação, apaixonada, do crítico Harold Bloom. Completam ainda esta joia editorial a fantástica série de cinquenta ilustrações de Gustave Doré, publicadas em 1866.
O paraíso perdido foi publicado originalmente em 1667, na Inglaterra, época politicamente conturbada. A Revolução Puritana inglesa depôs e executou o rei Carlos I e proclamou a República em 1649; porém a Monarquia foi restaurada em 1660. Dentre os intelectuais que apoiaram a Revolução, um dos mais destemidos foi John Milton que, com o retorno da Monarquia, caiu em desgraça, renegado ao ostracismo e ao esquecimento, e, por um problema de saúde, gradualmente perdeu a visão. Foi, porém, exatamente nesta condição que concebeu e desenvolveu este notável poema, que ao todo tem 10.565 versos.
Inspirado no Gênesis, que narra a rebelião de Satã contra Deus, a Criação do Mundo e a Queda do Homem pela desobediência de Adão e Eva no Jardim do Éden, o poema, John Milton declara, canta os desígnios de Deus aos homens – seu poema narrativo, portanto, é profundamente humanista.
Milton, um dos maiores intelectuais de seu tempo, dotado de uma imaginação prodigiosa e por vezes herética, havia defendido o divórcio, a liberdade de imprensa e até a poligamia. Criou, ainda assim, aqui, o clássico da literatura cristã do século XVII. Desde então, vem sendo lido e aclamado por grandes filósofos e escritores, como Shaftesbury, David Hume, Voltaire – para quem Milton é “um criador de maravilhas que ninguém jamais havia sonhado antes” –, Keats – “seu estilo é dotado de uma extraordinária beleza, sem precedentes” –, Borges – que acrediava que Milton ” sabia que seria um grande poeta mesmo antes de sê-lo”.
Inúmeros estudos foram feitos sobre a obra, analisada em si mesma, ou interpretada como rica metáfora, política, religiosa, moral.
O historiador da filosofia David Stuart Reid, em sua tese de doutorado na University of British Columbia, levanta o problema de que o humanismo de Milton, seu estudo sobre o homem, sua crítica à vida, não é imediatamente claro, pois que parte de uma decisão divina ao invés de um imperativo moral.
Segundo ele, para o humanismo neoclássico, cuja base era a eloquência, a literatura é a aplicação didática das ideias morais na vida. Mas O paraíso perdido vai além da imitação ideal: respondendo à ideia aristotélica de imitação, sua ação desdobra-se enquanto análise da volição. Segundo Reid, “apesar de baseado na eloquência, o humanismo neoclássico desenvolveu uma séria crítica da vida. Para além da noção retórica do senso comum desenvolveu um método lendo e fazendo observações, notável nos Ensaios de Montaigne e nos Ensaios Morais de Pope. Para além da noção de eloquência como discurso próprio ao humano urbanamente desenvolvido, um senso do que como são os humanos. Uma cultura literária capaz de fazer uma discriminação crítica desenvolvida por uma não criticamente classicizante. O ajuste fino da eloquência de Dryden para a atula condição de autoridade e civilidade contrasta com o ideal descritivo mais simples de Camões ou Tasso. O Paraíso perdido de Milton tenta realizar um ideal da conversação humana”. Sobre a análise da volição presente na obra de Milton, Reid diz que o poema “trabalha algumas destas intuições como imitação da ação humana. […] faz tanto mais valiosa a crítica da vida quanto vai além do usual estudo humanista neoclássico do homem”.
Autor: John Milton
Editora: 34
Preço: R$ 68,60 (896 págs.)