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Obscuridades do direito e da democracia

20 maio, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Diante do incessante avanço do que foi definido como uma ‘guerra civil mundial’, o estado de exceção tende sempre mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”.

Em Estado de Exceção, o filósofo italiano Giorgio Agamben estuda a contraditória figura dos momentos (outrora) “extraordinários” – de emergência, sítio, guerras –, nos quais o Estado manipula dispositivos legais para suprimir limites à sua atuação, a própria legalidade e os direitos dos cidadãos. Segundo o autor, “o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”: um poder além de regulamentações e controle, que hoje não é mais excepcional, é o próprio padrão de atuação dos Estados.

O livro apresenta uma reconstrução histórica crítica, cuja análise detém-se na lógica e na teoria por trás da evolução e consequências dos estados de execeção, de Hitler aos prisioneiros de Guantánamo. Para isso, Agamben problematiza pormenorizadamente filósofos e teóricos do direito, os estudos sobre ditaduras de Carl Schmitt (autor alemão, contemporâneo de Walter Benjamin, com quem polemizou) e as mudanças nas constituições europeias e norte-americanas que tornaram paradigmática a instituição do estado de exceção.

Em novembro do ano passado, em uma palestra pública proferida em Atenas, propondo uma reflexão sobre o destino da democracia, Agamben disse que a “hipótese que gostaria de sugerir é a de que o paradigma governamental dominante na Europa de hoje não só não é democrático como não pode sequer ser considerado político”. Na palestra, procurou “demonstrar que a sociedade europeia já não é uma sociedade política: é algo totalmente novo para o qual nos falta ainda uma terminologia apropriada e para o qual teremos, portanto, de inventar uma nova estratégia”. Segundo ele, em primeiro lugar seria necessário introduzir o conceito: “um conceito que, desde setembro de 2001, parece ter substituído qualquer outra noção política: segurança. Como sabem, a fórmula “por razões de segurança” opera hoje em todos os domínios, da vida quotidiana aos conflitos internacionais, enquanto palavra-chave de imposição de medidas que as pessoas não teriam motivos para aceitar. Irei tentar demonstrar que o real propósito das medidas de segurança não é, como é assumido, o de prevenir perigos, problemas ou sequer catástrofes”. 

Douglas Ferreira Barros, em artigo publicado na Revista Cult, contextualiza filosoficamente a vertente política estabelecida pelo pensamento histórico de Agamben. O italiano, segundo ele, “constitui certamente um desses pensadores que, por meio de refinada e contundente investigação teórica, termina por apontar certos pontos mal resolvidos na história recente e, ao submetê-los à crítica, abala alguns consensos que parecem se erguer à nossa frente como verdades incontestáveis. Agamben não é certamente o que se entendeu em décadas passadas – como Sartre nos anos 1950 e 1960 – por um filósofo militante. Muito menos, o seu pensamento pode ser localizado entre os que pretendem renovar o cânone marxista. Ele se filia à tradição crítica do marxismo contemporâneo por influência do filósofo alemão Walter Benjamin. Também, a sua abordagem de problemas centrais da política contemporânea deita raízes nas filosofias críticas do século 20, que estudam o modo de legitimação social de estruturas de poder singulares, tanto em sua forma, no caso da obra de Michel Foucault, quanto na forma e no conteúdo, no caso da análise dos totalitarismos feita por Hannah Arendt. Com relação à herança clássica da filosofia, a obra de Agamben mantém filiação muito mais com os textos e os temas que lhe fornecem material para a elaboração de seu trabalho conceitual do que encontramos ali uma preocupação especial em aprofundar a história da filosofia”. A novidade da tese de Agamben, segundo Barros, “está em que essa posição do soberano, interna e externa à norma, identifica um problema que transborda o limite do jurídico. Em Estado de exceção, o filósofo nota que a ausência de uma teoria da exceção no direito público não reflete o quanto esse tema já fora discutido. O que importa nesse caso não é que ele aponte essa lacuna, mas, sim, a ênfase no fato de que “a contigüidade essencial entre estado de exceção e soberania” constitui um problema genuinamente político”. Um exemplo recente seria o processo de dissolução da ex-Iugoslávia, que a transformou, durante os anos 1990, em pequenos países; nas palavras de Barros, “alguns dos novos regimes que, naquela região, se instalaram, depois da dissolução do socialismo então vigente, não sucederam exatamente à situação em que os homens teriam reencontrado a sua condição natural e, depois dela, instituiriam um novo poder político, a partir de um pacto, e um novo Estado, tal como pensado pelo filósofo inglês Thomas Hobbes, em Leviatã (1651). Na ex-Iugoslávia, aqueles novos regimes autoritários estabeleceram o estado de exceção como norma e, por meio dela, os governos poderiam controlar aos cidadãos identificados como os “inimigos da ordem”. Não foram poucas as situações de extermínio e violação dos direitos humanos que se verificaram ali. Horrores, como genocídios étnicos, que se pensava terem sido eliminados com a derrota de Hitler e do nazismo, foram revividos em versão tão inescrupulosa quanto as do passado recente. O diagnóstico de Agamben identifica nesse caso, de fato, o germe de uma peste a se alastrar em algum momento no futuro: “Não se trata, portanto, de um retrocesso da organização política na direção de formas superadas, mas de eventos premonitórios que anunciam, como arautos sangrentos, o novo nómos da terra, que (se o princípio sobre o qual se baseia não for reinvocado e colocado novamente em questão) tenderá a estender-se sobre todo o planeta”.

Segundo Carlos Eduardo Ortolan, o “estado de exceção, dirá Agamben, não é uma especial constituição ontológica que se encontra, simultaneamente, “dentro-fora” da norma jurídica, mas é uma supressão da norma, um vazio jurídico, um estado de anomia. […] A destruição da mitologia do estado de exceção, segundo Agamben, do nexo essencial entre vida e direito, seria o espaço próprio da ação política. O estado de exceção é uma mitologia, um vazio legal que, entretanto, tem a capacidade funcional de estabelecer a própria norma. Para Agamben, a verdadeira atividade política atravessa a ruptura do nexo entre direito e vida, entre as pretensões de uma fundamentação artificial da norma jurídica num mitológico estado de anomia (como o estado de natureza, ou de exceção), o que garantiria um direito “puro” e uma ação “pura” (na acepção de Benjamin), aos quais correspondessem “somente o uso a práxis humana que os poderes do direito e do mito haviam procurado capturar no estado de exceção”.

 

O livro, infelizmente esgotado em sua versão impressa, está disponível para venda apenas em formato digital (eBook).

 

O ESTADO DE EXCEÇÃO

Autor: Giogio Agamben
Editora: Boitempo
Preço: R$ 22,00 (144 págs.)

 

 

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