Todo o trabalho de Leonilson (1957-1993) é profundamente poético.
Predominantemente autobiográfica, embora ainda uma espécie de crônica – a um só tempo delicada e mordaz – angustiosa da vida moderna, a obra do artista cearense ocupa um lugar muito particular na arte brasileira.
Ao definir a sua própria obra, o artista insistia que seu sentido original deveria restringir-se ao registro de sua vida privada: “O mundo exterior não existe. O que a gente procura está dentro de nós”, dizia. Cada uma de suas obras, assim, pode ser vista como um fragmento de um diário íntimo, a organizar, e mesmo traduzir, vivências de maneira pictórica e plástica.
Sua obra é rica, profusa e cala uma profundidade semântica comovente. Entre pinturas, desenhos, bordados e algumas esculturas e instalações, ele registrou sua subjetividade ou caricaturizou impressões críticas sobre os valores de um mundo que cultua aparências, quer nas instituições artísticas, como a Bienal, quer na cultura de maneira geral, que dá tamanho espaço para que, por exemplo, apresentadoras de televisão enriqueçam por trás de práticas populistas com crianças. A arte de Leonilson, em contrapartida, é despojada e extremamente sincera.
Inexplicavelmente, em meio à profusão de trabalhos escritos e publicados sobre personagens da história das artes contemporâneas, existem poucos dedicados a ele. Um deles aborda apenas os desenhos especialmente produzidos para ilustrar a coluna de comportamento “Talk of the town – o ti-ti-ti da cidade”, da jornalista Barbara Gancia na Folha de São Paulo. Este livro reúne 102 desenhos, ordenados em sequência cronológica, realizados entre 1991 e 1993.
As formas nos seus desenhos são envoltas por um contorno escuro, lembrando talvez o grafite norte-americano. Elaboram elementos que são permanentemente retomados até o fim de sua vida, tais como o livro aberto, o coração, a torre, o radar, a espiral, o relógio, o átomo, a bússola e a ampulheta. Parte da sua construção de uma expressão pessoal e subjetiva, desde 1984, Leonilson desenhou e pintou formas orgânicas que se aproximavam cada vez mais de cartografias do corpo. Também a partir da década de 80, ele passou a desenvolver com as palavras a constituição de uma linguagem própria, tema de O Pescador de Palavras (1986). A partir de então, sua produção começou a sofrer certo despojamento formal, ainda que o conteúdo fosse mantido pelos uso de palavras carregadas de valor moral, tais como “sinceridade”, “integridade”, “honestidade”, ou, por outro lado, que indicassem manifestação de estados íntimos, como “cheio e vazio”, “ansioso”, “alegre”, “tímido”, “solitário”, “hipócrita”, “deslocado”, “cético” ou “confuso”.
É um aspecto interessante nos trabalhos de Leonilson o uso da palavra. Sobre a palavra nos desenhos feitos para a coluna de Barbara Gancia, especificamente, Ivo Mesquita analisa que, “como na Pop Art, seguindo a tradição da gráfica modernista, a palavra que dá nome a um objeto aparece como o desenho do objeto que ela designa; ou então, ela acompanha a imagem para sublinhar seu significado, indicando tautologicamente o que é essa imagem”.
Mesquita, acompanhando o desenvolvimento dos desenhos ao longo da trajetória do artista na coluna de Barbara Gancia, aponta que foram “sendo introduzidos pouco a pouco elementos dissonantes, que resultam em imagens mais ácidas, sutis e poéticas que a relevância dos episódios comentados”. Leonilson, segundo Mesquita, pouco a pouco desenvolveu um procedimento, “de contrapor outras perspectivas ou possibilidades além do ponto de vista expresso pela colunista ou por seus entrevistados”, procedimento que “define uma qualidade específica deste período dos desenhos, registrar com humor e ironia as tensões e estressamentos da vida contemporânea. Os desenhos desta fase indicam a passagem da ilustração para a caricatura, uma prática indissociável de seu próprio tempo, realizando-se exatamente na sua relação com o mundo”. Mesquita pontua, porém, que “a AIDS mudou o rumo da sua vida e marcou sua produção artística, conferindo-lhe uma terminologia final e irredutível. A simplicidade e o despojamento característico de sua obra, particularmente de seu desenho, são tencionados pelos conteúdos que eles vão explicitando, uma morte anunciada, pois assim é nos casos das enfermidades irreversíveis, e uma intensa busca de sentido para a travessia da vida. […] Nessa etapa final da carreira, seu interesse concentra-se na questão do corpo, do seu próprio corpo como metáfora, buscando, através da arte, alguma transcendência. […] Vendo sua vida esvair-se, ele dispõe do que ainda tem para nutrir os significados plásticos em suas possibilidades de deslocamento e transformação. Seu trabalho empenha-se, a partir de então, em desmascarar as regras, os tabus, os constrangimentos e os limites dos injunções morais impostos os corpo e ao desejo”.
Segundo Lisette Lagnado: “Não somente esses desenhos continuam fazendo sentido, como a gente deve quase agradecer que tenha havido tal troca entre artista e jornal. Por duas razões: porque o desenho é o maior veio artístico de Leonilson; porque sua obra não é tão vasta assim. Graças a esse conjunto, a produção de Leonilson pôde receber um estímulo externo fundamental. Não podemos esquecer que, afinal, eu mencionei ‘desenhos para a galeria’, mas o mercado de Leonilson não existia. Era uma ficção da mídia. Quanto ao valor de um desenho sobre papel, nem se fala. O mercado só valorizou a pintura de Leonilson enquanto o artista esteve vivo”.
Noemi Jaffé, em artigo publicado na Folha de São Paulo, fez uma bela análise:
“Há alguns tipos de silêncio. O de John Cage, pleno e musical, e o silêncio do diretor de um museu da Croácia, que, durante a guerra, percorria o mundo em palestras silenciosas, dizendo, após algum tempo, que não era possível dizer mais nada. É dessa qualidade o vazio que compõe as telas de Leonilson. […] Não é um vazio que ressalta as figuras nele contidas. É como se ele emergisse delas e elas também nascessem dele. É um vazio carregado de dor e de curiosidade, e sua impotência adquire potência máxima. Não se trata do vazio da depuração, mas do branco e da economia da concentração. As imagens e palavras mínimas -o pato, o louco, o cristo, o matemático- apresentadas por cabeças saindo de dentro de cabeças, fogo escapando por olhos, umbigo e sexo, o infinito, não são metáforas de sua dor e de seu desejo de comunicação. São, como diz Lisette Lagnado em seu texto sobre o autor, metonímias. Enquanto as metáforas, simbólicas, diluem livremente a imagem e a transportam para outras dimensões de interpretação, a metonímia, mantém a imagem em seu próprio espaço, remete a ela mesma. Dessa forma, o louco é o louco, o fogo é o fogo, o espelho é o espelho”.
Autor: Leonilson (Textos: Barbara Gancia, Ivo Mesquita)
Editora: CosacNaify
Preço: R$ 1.800,00 (200 págs.)
[Caro leitor, este preço, bastante abusivo, não foi digitado errado. O livro, esgotado, não encontra-se disponível mais nem em sebos, deixando os interessados à mercê de oportunismos mercadológicos como este]
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.nota.
O título desta nossa “matraca” alude a este poético trabalho: