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Clima de pastelão macabro

28 maio, 2014 | Por Isabela Gaglianone

A peça de teatro A lata de lixo da história – Chanchada política, escrita pelo crítico literário, sociólogo, professor e poeta Roberto Schwarz, acaba de ser relançada pela Companhia das Letras. Escrita durante o exílio do autor na França – pois, durante o AI-5, em 1968, ele, então professor de teoria literária na USP, foi acusado de promover a subversão marxista na universidade –, a peça foi inspirada pelas leituras que Schwarz fez no esconderijo improvisado, felizmente guarnecido com uma boa biblioteca, que continha, entre outros, O príncipe, de Maquiavel, e O alienista, de Machado de Assis: inspiração e a matéria-prima para A lata de lixo da história, chanchada em treze cenas que transfigura o clássico machadiano numa sátira impiedosa da sociedade brasileira durante o regime militar.

A partir de uma visão crítico-irônica dos usos e abusos do poder, é construída a situação farsesca da peça, utilizando-se do cômico e do grotesco como expressões de um conteúdo crítico atualizado. 

A revista Piauí publicou, na edição de abril, o prefácio inédito de Schwarz à peça, no qual ele diz: “No final da década de 60, a “lata de lixo da história” era uma expressão difundida, levemente fanfarrona. Designava o depósito de velharias ao qual, com sorte, seriam jogados os políticos, as práticas e as teorias responsáveis por formas caducas de opressão. Capitalismo e stalinismo iriam embora de braço dado, no mundo e no Brasil, varridos pelo progresso da história e pelos estudantes libertários. Entretanto, como se verificou em seguida, o curso das coisas não foi o esperado, até pelo contrário. E como o sistema dos opressores se reciclou e venceu em toda linha, a expressão – tão simpática – saiu de moda. Ainda assim, se consultarmos a nossa experiência e nosso íntimo, talvez convenhamos que ela, a lata, não perdeu a razão de ser, nem deixou de falar à imaginação. Por expressar o que devia ter sido e não foi, achei que era um bom título para uma chanchada política. A ideia de transformar O Alienista de Machado de Assis numa sátira à ditadura de 1964 estava no ar. Havia um paralelo óbvio entre o terror espalhado por Simão Bacamarte – o cientista maluco e sinistro que infelicitava a pacata Itaguahy – e o regime antipopular dos militares, com seus ministros da Fazenda que metiam medo e disciplinavam o país para o capital”. Schwarz analisa o alcance desse paralelo: “O paralelo funcionava como uma via de duas mãos e tinha efeitos retroativos. Não era só o velho Machado que emprestava personagens e situações para falar da repressão em nosso presente. O caminho inverso também valia, sugerindo uma leitura menos convencional do mestre e, por meio dele, do passado brasileiro. O festival de desfaçatez armado por nossas elites logo em seguida ao golpe, com sua salada de modernização, truculência e provincianismo, ensinava a reconhecer aspectos até então recalcados da ironia machadiana. Esta aparecia a uma luz nova, muito mais ferina e política, de incrível atualidade”. Segundo o autor, “o clima era de pastelão macabro”.

Ironizando até mesmo a necessidade de transportar a crítica política para o Brasil colonial –  e a cidade de Itaguahy para uma improvável Suíça – naquele clima geral de censura e delação, Schwarz reaproveita o enredo e os personagens machadianos com humor, agudeza e mordacidade. O germe das “ideias fora de lugar”, um dos principais temas de sua obra crítica, transparece nas ações desmioladas do alienista Simão Bacamarte, que implanta em Itaguahy um regime totalitário, inteiramente baseado numa “ciência” importada, para salvaguardar a saúde mental dos cidadãos, mas que acaba por tornar o hospital uma masmorra semelhante às câmaras de tortura da repressão, que aos poucos aprisiona toda a cidade.

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Nesta peça tudo é questão de ritmo e corte, pois ela é construída sobre transições canceladas. A passagem da chanchada à atrocidade, as conversões rapidíssimas e reversíveis em matéria de convicção, a brevidade com que se dispõe de uma discurseira, a alternância de asneira e cinismo devem fazer figura de História contemporânea.

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A LATA DE LIXO DA HISTÓRIA – CHANCHADA POLÍTICA

Autor: Roberto Schwarz
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 39,00 (120 págs.)

 

 

 

 

 

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