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Documentos líricos

27 maio, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Foto de Maureen Bisilliat, do livro “Xingu”

“Ninguém ignora o que se passa com o índio. Mas, para mostrar seu drama, não é necessário expor só a degradação, a decadência. É igualmente importante deixar patente o quanto ele foi belo, digno e forte, e a grandeza do que está sendo destruído” – Orlando Villas Bôas.

A inglesa Maureen Bisilliat descobriu a fotografia através da literatura brasileira. Chegou ao Brasil em 1952, após ter estudado pintura em Paris e Nova York. Aqui, trocou a pintura pela fotografia. Um de seus belos, poéticos e profundos  livros sobre a cultura brasileira é este Xingu – Território Tribal, realizado em parceria com os irmãos Villas Bôas

Em 1964, ela começou a trabalhar para a Editora Abril, colaborando para as revistas Quatro Rodas e Realidade, até 1972. Para esta última publicação, ela realizou um de seus trabalhos mais conhecidos, o ensaio Caranguejeiras: em um mangue de Pernambuco, registrou o trabalho das coletoras de caranguejos, com lama da cabeça aos pés; longe de fazer uma denúncia das duras condições de vida das caranguejeiras, Maureen mostra seus gestos e movimentos nas fotos como uma espécie de dança. Esta revista dava especial atenção à questão indígena, trabalho midiático em função do esforço militar por levar o “desenvolvimento” para o interior da Amazônia, pelo qual entrava-se em constante choque com as populações indígenas locais. Apenas em 1973, entretanto, Maureen Bisilliat visitou pela primeira vez o Parque Indígena do Xingu, a pedido de Orlando Villas Bôas. E em 1979 publicou seu primeiro livro sobre o assunto, Xingu – Território Tribal (publicado pela Editora Cultura), lançado em diversas línguas e países. Voltou ao assunto em 1995, quando organizou o livro Guerreiros sem Espada: Experiências Revistas dos Irmãos Villas Bôas, uma coleção de reportagens publicadas sobre os dois indigenistas, desde a Expedição Roncador-Xingu, iniciada em meados dos anos 1940, até a década de 1970.

Segundo a socióloga Maria Beatriz Coelho, os “índios de Maureen são apresentados com uma linguagem plástica, em que a cor se destaca como um elemento expressivo, aumentando ainda o vigor das fotos. O que lhe interessa não são os costumes, a relação com a natureza ou com outros povos, mas as formas, as cores, os desenhos, os detalhes e os ornamentos. Ou, melhor, a vida na aldeia é reconstruída, sim […], porém sob uma perspectiva cênica e absolutamente plástica. Segundo Maureen: […] minha tarefa foi, em muitos sentidos, facilitada e até dignificada por aquilo que posso descrever como a consciência cênica do índio. Quantas vezes mantive uma expressão dentro dos limites da câmera, esperando até que um cocar fosse perfeitamente ajustado; colocada uma ou outra pulseira; dado ao corpo o toque final – não por razões de vaidade, e sim pelo justificável orgulho de “ser” como a pessoa “é”.

Em entrevista publicada no site dedicado à figura do índio na fotografia brasileira, Povos indígenas, Maureen conta que seu trabalho com a iconografia do Xingu “começou com um pedido do Orlando Villas Bôas, que na época viu o livro que eu tinha acabado de publicar – A João Guimarães Rosa [1969]. Ele me chamou e disse que queria que eu fizesse um trabalho semelhante sobre o Xingu, portanto em preto-e-branco. Mas as coisas mudaram, porque do preto-e-branco logo passei à cor, e em vez de fazer apenas uma viagem estive por lá inúmeras vezes durante os anos 1970”. Sobre essa migração do preto-e-branco para a cor, ela explica que “talvez tenha sido um processo óbvio. Aquela primeira viagem, como foi a pedido do Orlando, as fotografias foram realmente quase todas feitas em PB. Mas a cor é algo que desperta no Xingu. Foi um contágio, digamos assim”. Maureen conta: “Eu publiquei o livro Xingu – Território Tribal em 1979. Agora estou vivendo uma outra migração, pois no ano passado o Instituto Moreira Salles [que guarda o acervo de originais da autora], me propôs fazer um novo livro sobre o Xingu. Eu tinha, no entanto, uma certa reticência em aceitar essa ideia, porque achava que pudesse ser apenas um remanejo da primeira publicação. No entanto, com a ênfase nas imagens em preto e branco, tornou-se mais “explicativo” ou documental. Posso dizer que está sendo uma redescoberta até para mim!”. Sobre o trabalho de campo, a fotógrafa diz: “Eu escolhia sempre os meses de julho, agosto e setembro, por causa da luz cálida e pelas cerimônias que são celebradas nesta época do ano. Se eu fosse uma pessoa mais atenta ao som teria ido também na época da chuva. Nos ambientes mais reclusos é a voz que predomina. Naquela época usávamos filmes, negativos e cromos que precisavam ser revelados e, por isso, íamos fotografando sem poder ver o resultado. Então eu raramente ficava mais de 5 semanas, porque ia perdendo a referência do que já estava feito, do que tinha dado certo ou não”. Na entrevista, questionada sobre a intenção do livro, por não explorar nenhuma situação de conflito ou de doenças, nem denunciar os problemas que viviam muitas das comunidades xinguanas, Maureen explica que “o texto de introdução, escrito por Orlando e Cláudio, aponta para a perda de populações indígenas e para os perigos da época, lembrando, entretanto, a força do índio tradicional. Minhas imagens são um retrato do índio que naquele tempo ainda vivia dentro das suas leis, num território tribal que, conservando suas tradições, tinha o tempo necessário para incorporar os elementos externos sem perder a sua essência. Apesar de ter recebido críticas dizendo ser um trabalho estetizante, nós achávamos que naquele momento específico era importante mostrar a força do índio, e não a sua fragilidade”. Segundo ela, todos os textos foram feitos conjuntamente com os irmãos Villas Bôas. Sobre o que lhe representou essa experiência no Xingu, ela diz: Eu acho que cada pessoa tem a sua paisagem, aquela com a qual se identifica. Para mim nunca foi a savana, sempre foi o deserto, a neve, as altas montanhas. Mas poder ficar nas aldeias é importante, é absolutamente necessário. Você acorda muito cedo, no frio da madrugada, para poder acompanhar o despertar das pessoas e se relaciona com o desenvolver das funções do dia. Você aprende a ter paciência e a agüentar o tédio dos muitos momentos de nada fazer. Eu ainda escuto aquele barulho hipnótico das flautas no calor da tarde, antes de chegar o frio da noite, aquele mormaço… Para mim foi um desafio não se deixar entrar na letargia. Enquanto ao comportamento, no contato diário aprende-se quando estar presente e quando se afastar; a participar sem perturbar. O índio xinguano tem grande perspicácia e um agudo senso de humor; tudo percebe, tudo enxerga, tudo vê”.

Na trajetória da fotógrafa, parte relevante de seu trabalho foi inspirado em obras de grandes escritores brasileiros, de modo que a técnica alia-se à procura de maneiras de combinar textos literários e imagens. A partir da década de 1960, ela fotografou o Brasil tal como relatado – e imaginado – na obra de escritores consagrados. Nos livros que resultam desse projeto fotográfico-literário, as legendas das fotos são substituídas por trechos das obras, o que indica a preocupação, mesmo no início de sua carreira como fotógrafa, em fazer da fotografia uma espécie de elemento narrativo, cujo tema às vezes sugere sequência, história e ritmo. Esses trabalhos estão materializados como os seguintes livros: A João Guimarães Rosa, 1966; A Visita, 1977, baseado no poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987); Sertão, Luz e Trevas, 1983, no clássico de Euclides da Cunha; O Cão sem Plumas, 1984, no poema de mesmo título de João Cabral de Melo Neto; Chorinho Doce, 1995, com poemas de Adélia Prado; e Bahia Amada Amado, 1996, com seleção de textos de Jorge Amado. Em 1985, Bisilliat expôs em uma sala especial na Bienal Internacional de São Paulo um ensaio fotográfico inspirado no livro O Turista Aprendiz, de Mário de Andrade.

Nos anos 1980, além de seus projetos fotográficos, ela passou a desenvolver diversos trabalhos em vídeo. Em 1988, Darcy Ribeiro convidou a ela e ao seu marido, Jacques Bisilliat, para assumirem a direção do Pavilhão da Criatividade do Memorial da América Latina, em São Paulo.

Algumas das fotos do livro Xingu, bem como o portfólio de Maureen Bisilliat, podem ser visualizados através de site do IMS, detentor de seu acervo.

 

 

XINGU – TERRITÓRIO TRIBAL

Autor: Maureen Bisilliat, Orlando Villas Bôas, Cláudio Villas Bôas
Editora: Editora de cultura
Preço: R$ 150,00 (200 págs.)

 

 

 

 

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