“Não se trata de ter disposição: você é um operário como qualquer outro: se trata de ter horas de trabalho. Então, vá escrevendo, vá trabalhando sem disposição mesmo. A coisa principia difícil, você hesita, escreve besteira, não faz mal. De repente você percebe que, correntemente ou penosamente (isto depende da pessoa) você está dizendo coisas acertadas, inventando belezas, forças, etc. Depois, então, no trabalho de polimento, você cortará o que não presta, descobrirá coisas pra encher os vazios, etc”.
A correspondência de Mário de Andrade é fundamental para se pensar a abrangência de seu pensamento na vida cultural e artística brasileira. A correspondência com escritores mais jovens, especificamente, é prova de sua influência no desenvolvimento literário de importantes nomes de nossas letras, como foi o caso com Fernando Sabino.
O livro Cartas a um Jovem Escritor. Remetente: Mário de Andrade. Destinatário: Fernando Sabino traz a seguinte nota: “As cartas de Mário de Andrade foram transcritas na íntegra, respeitadas a pontuação e a grafia característica de certas palavras. Apenas a acentuação foi atualizada”.
A correspondência entre os dois escritores teve início após o lançamento do primeiro livro publicado por Sabino, em 1941, quando ele tinha apenas dezoito anos. Mandou a Mário de Andrade um exemplar e este, como era de seu feitio, ainda que no auge de seu prestígio literário, escreveu ao jovem desconhecido sua sincera opinião, não só sobre o livro, mas sobre a grande potencialidade literária que vislumbrou em sua prosa.
Após a primeira carta, mais trinta seguiram-se. Reunidas em conjunto, elas formam valiosas aulas a todos os jovens escritores, contendo conselhos precisos e opiniões terrivelmente lúcidas sobre o árduo trabalho literário. Também mostram análises sobre questões caras aos modernistas, como a brasilidade, formação de identidade nacional, cuidado com a língua.
A correspondência foi interrompida em janeiro de 1945 após Sabino, apaixonado pela filha do governador de Minas Gerais, ter convidado Mário para padrinho de seu casamento. Como o padrinho, do lado da noiva, seria o então presidente Getúlio Vargas, Mário, opositor cotumaz do regime, acabou por declinar do convite, o que deu fim à amizade. “Que nos odiemos”, disse Mário na carta derradeira. “Mas não se perderá o que há de mais elevado na relação entre os homens, a estima”. Em fevereiro do mesmo ano, faleceu.
Flavio Tito Santos, em artigo sobre a correspondência entre escritores, cita Marcos Antônio de Moraes – autor do livro Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade [Edusp, 2007] –, que “endossado pela noção de “sistema literário” formulada por Antônio Cândido (2010), pensa haver entre os literatos a existência de uma rede de sociabilidade que teria, entre outras, a função de ser o espaço de discussão que daria lugar à própria instituição literária, por meio da definição de um discurso comum e de um público leitor das obras literárias: os próprios escritores (MORAES,2013). As cartas, então, teriam a função de alimentar essa rede de discussões. Também é possível reconhecer a existência de caracteres da relação estabelecida entre os escritores e a escrita por meio das missivas, que parecem descrever, para além das peculiaridades estéticas do autor – seu estilo, seu método, suas influências –, um modo de vida constituído em torno da prática escriturária”. Tito lembra, para fechar seu argumento, o depoimento de Drummond que, sobre as cartas de Mário de Andrade, disse que “depois de recebê-las, ficávamos diferentes do que éramos antes”.
Nas cartas a Fernando Sabino, o mestre adverte para a necessidade de trabalho, árduo e constante. Em uma das cartas, diz: “[…] Mas antes exijo que você pense muito seriamente sobre você. Tanto mais que, pelo que seu livro indica como tendências pessoais, o seu caminho na arte é pesado, muito árduo e sem brilho. Você não irá estourar por aí, ganhando a batalha de um golpe só, como um Lins do Rego, uma Raquel de Queiroz. […] Você irá escrevendo, irá escrevendo, se aperfeiçoando, progredindo aos poucos: um belo dia (si você agüentar o tranco) os outros percebem que existe um grande escritor. […] Ora, Fernando, pra agüentar com um destino desses, antes de mais nada, é preciso ter uma ambição enorme, uma paciência enraivecida, um desejo de se “vingar” da vida, e uma ensolarada saúde mental. Você tem isso? Não seja tímido nem humilde não, que então é fracasso na certa. Não tenha vergonha de se confessar a si mesmo (não a mim) que você tem ótimas qualidades, é muito inteligente, é orgulhoso de si, tem desprezo pela frouxidão alheia e quer chegar e há-de chegar”.
Sabino conta: “Eu lhe confiava as minhas dúvidas e preocupações literárias com o ardor dos que querem vencer a todo custo […] com sua paciência apostolar (e epistolar) ele me respondia longa e minuciosamente, procurando me orientar no cipoal de minhas contradições”.
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Primeira carta de Mário de Andrade a Fernando Sabino:
S. Paulo, 10-01-42
Fernando Tavares Sabino
Si você quiser continuar sendo escritor, antes de mais nada tem que encurtar o nome. Tavares Sabino, Fernando Tavares, Fernando Sabino. O que é impossível é Fernando Tavares Sabino. Me desculpe esta sinceridade e entremos pelas outras.
Muita ocupação, só nesta noite de sábado pude ler os seus contos e lhe escrevo imediatamente, enquanto a impressão é nítida. Saio do seu livro com a convicção de que você é um escritor, é um artista. Não que o livro seja bom, mas é uma estréia excelente, uma estréia promissora, denunciando fartas possibilidades.
Antes de mais nada: eu achava que os estreiantes deviam pôr nos seus livros a idade que têm. Que idade tem você? Isso importa extraordinariamente nesse caso como o seu, por causa justamente das possibilidades fartas. Si você está rodeando os vinte anos, de vinte a vinte e cinco como imagino, lhe garanto que o seu caso é bem interessante, que você promete muito. E o livro, neste caso é bom. Mas si você já tem trinta ou trinta e cinco anos, já estudou muito (você parece de fato se preocupar com a expressão lingüistica) e está homem-feito, não lhe posso dar aplauso que valha. Neste caso o livro fica medíocre, sem o menor interesse. É apenas um dos muitos.
Seu livro já está muito bem escrito. Não há dúvida nenhuma que você, como bom mineiro (?) tem o sentimento da língua, como cultura e principalmente como estilo, como expressão de pensamento. E tem no que escreve um sabor brasileiro, muito firme, muito nítido e muito atilado. De extremo bom gosto. Quero dizer: você não cai em nenhum exagero de brasileirismo falso. Com um bocado mais de apuro estilístico e de conhecimento técnico da linguagem, das linguagens populares do Brasil, você chegará a ótimo, talvez grande escritor. De uma língua que já é, indiscutivelmente, nacional.
O problema, a meu ver, é tanto mais grave no caso de você que nele se intercala o da sua personalidade de ficcionista. Será você de fato um contista? Este problema é dos mais graves e dos que você precisa resolver pra si próprio. É incontestável que você não tem nenhum conto verdadeiramente forte como assunto. Cujo assunto imponha o conto por si mesmo, como Os Faroleiros, de Monteiro Lobato, como Pedro o Barqueiro, de Afonso Arinos. Não nego que sejam “contos” os contos de você, mas não parece, pelo livro, que você tenha forte imaginação criadora, grande imaginativa, excepcional faculdade de invenção.
Seus contos são leves e delicadas transposições líricas da vida, como o admirável Verdes Anos, ou irônicas transposições realísticas da vida. Estou pensando em Machado de Assis. Seus contos estão longe de ser impressionantes. Longe de prenderem a gente por uma idealidade humana definitiva qualquer. Aí é que a arte, como beleza de criação técnica, interfere definitivamente para impor e justificar um criador. Si você não fizer coisas maravilhosamente bem feitas como técnica, como estilo, como arte de escrever, como bom gosto espiritual, você será apenas “mais” um.
No gênero dos seus contos, você tem, a meu ver, descaídas lastimáveis, principalmente para o lado anedótico. Apesar das observações, excelentes, no realismo humourístico com que você esteriotipa gestos e expressões verbais, contos como As Rosas iam Murchar e o Padre Venâncio, são simples anedotas simplórias, de lastimável descontrole e nenhuma autocrítica. Mesmo o caso do telefone que, não posso negar, é muito engraçado e me fez rir bastante, é, em última análise grosseiro, tratado sem tacto, sem delicadeza, bacalhoada de Portugal com arrotos e todas as faltas de medida. Quando você tem, pra salvar seus contos na arte, de abandonar qualquer colorido mediterrâneo e se esquipar no senso de medida dos franceses, e na delicadeza espiritual de ingleses e nórdicos.
Mas ainda eu me pergunto si sua tendência é realmente para o conto e não para o romance… Pela faculdade de observação naturalista, pela riqueza de tipos psicológicos, não sei, sinto em muitos dos nossos contistas, e em você, romancistas verdadeiros, que por preguiça, por falta de tomar fôlego, erram de espécie, se dispersam no conto, quando são romancistas legítimos.
Não sei si você consegue perceber que no fundo seu livro me interessou muito. Mais você que o livro, aliás… Conforme a idade, lhe garanto que você pode ir longe. Mas não como um Jorge Amado, pouco trabalho, ignorância muita, criação de sobra. Você tem que trabalhar dia por dia. Como um Machado de Assis.
E não lhe seria possível botar um bocado mais de responsabilidade humana coletiva nas suas obras?…
R. Lopes Chaves, 546 – S. Paulo
Mário de Andrade
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CARTAS A UM JOVEM ESCRITOR. REMETENTE: MÁRIO DE ANDRADE. DESTINATÁRIO: FERNANDO SABINO
Autor: Mário de Andrade
Editora: Record
Preço mínimo: R$ 27,00 (226 págs.)
[disponível apenas em sebos]