fotografia

A semântica do enquadramento

24 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

fotografia de Milton Guran, índios Kayapo, 1990.

O livro Linguagem Fotográfica e Informação, do fotógrafo e antropólogo Milton Guran, investiga o que faz a contundência de uma imagem fotográfica; desenvolvendo o conceito de “foto eficiente”, situa sua reflexão em um entroncamento ético e estético.

Pensando a evolução técnica da fotografia e dos equipamentos fotográficos e seus usos, quer artísticos, quer documentais enquanto informativos ou midiáticos, ele baseia sua argumentação na análise dos processos de significação da própria linguagem fotográfica, a partir da crítica à composição da imagem.

Segundo ele, “a fotografia é uma extensão da nossa capacidade de olhar”, portanto uma representação subjetiva. A possibilidade criativa sobre um fato ou uma cena é tão grande quanto a existência de seus detalhes, cada qual potencial dispositivo de direcionamento de absorção e compreensão do objeto fotografado. Para Guran, “fotografar é efetivar um reconhecimento antecipado: aquilo que é visto não pode mais ser fotografado, porque já passou”. Os desdobramentos formam uma rede discursiva, que inclui funções estratégicas, engajamento político, relações de poder, proposições filosóficas.

A problemática é intrínseca à concentração de potencialidades lingüísticas e significativas encerrada em uma imagem fotográfica. De acordo com o autor, a própria “composição fotográfica tem como finalidade dispor os elementos plásticos percebidos através do visor para conferir significado a uma cena”.

O conceito de eficiência fotográfica é desenvolvido por Guran com a reflexão sobre as fotografias jornalísticas e sobre as fotografias instrumentais, utilizadas para ilustração de trabalhos antropológicos, como instrumento de pesquisa. “Como em qualquer outra utilização da fotografia, o que importa é a eficiência da foto em transmitir com clareza uma determinada informação. Deste modo, foto boa é foto eficiente […]. São elementos da linguagem fotográfica, no nosso entender, a luz, a escolha do momento, o ajuste focal, o enquadramento, além da questão colocada pela atuação das diversas objetivas e dos diferentes códigos representados pela foto em preto-e-branco e em cores”. Em entrevista concedida à pesquisadora Ana Maria Mauad e publicada na revista Studium, o fotógrafo exemplifica: “Fotografia eficiente é aquela que traduz com eficácia, com eficiência, que veicula a informação para a qual ela foi produzida. Então, um bom exemplo é o seguinte: a fotografia que é eficiente para a identificação policial, 3X4, não é eficiente pra notificar, ou informar, qual é a cara do ganhador do prêmio da poesia. É o mesmo individuo, só que fotografado 3X4, se você pegar a foto da carteira de identidade do vencedor do prêmio de poesia e botar no jornal, vão achar que ele morreu, né? Mas,  se você fizer uma foto do poeta a meia luz, não sei o quê, metade do rosto na sombra, meio de lado, essa foto pode sugerir o poeta, mas não serve para identificação policial. Porque a foto eficiente é aquela que é eficiente na sua função de levar adiante uma determinada informação e isso é resultado da boa utilização da linguagem fotográfica a serviço desse determinado fim”.

Na mesma entrevista, Guran, refletindo sobre o ato fotográfico, analisa: “o ato fotográfico, é o seguinte: ele vai adiante da razão. Adiante no sentido de que ele vai mais rápido e independente da razão. Fotógrafo é fotógrafo porque o instrumento de diálogo que ele tem não é a palavra, não é o raciocínio e sim o olhar, a perspicácia visual, é a percepção dessa dimensão mágica aonde se inscreve a imagem. Então, isto é verdade, o que quer dizer que o fotógrafo registra coisas que ele não chega a perceber completamente, mas ele intui. Essa intuição é que garante o bom registro, até porque o fotógrafo não fotografa o que vê, ninguém fotografa o que vê, você fotografa o que você antevê, o que você adivinha, pois o que você vê já passou, já não é mais foto, você tem de se adiantar ao desdobrar da vida para pegar a foto”.

Segundo ele, uma fotografia pode ser o ponto de partida de uma reflexão, ou o resultado dessa reflexão. Jamais, porém, completamente destituída de suas dimensões simbólica e autoral.  Ela descreve, representa e, sobretudo, interpreta – produto de uma série de contingências, a fotografia é um ato cultural, consequência da maneira como o fotógrafo pensar e ver o mundo.

Guran analisa a fotografia como instrumento e como objeto, percebida “à luz dos pressupostos teóricos e procedimentos metodológicos que presidem a reflexão científica”. Enquanto fotógrafo e antropólogo, o autor realizou importantes trabalhos junto a grupos indígenas brasileiros; dentre essas fotografias, algumas pertencem à coleção MASP-Pirelli. O projeto intitulado “Conflito e resistência dos povos indígenas na Amazônia”, de 1991, levou-o a fotografar os povos Kayapó e Yanomami, trabalho de que resultou uma seleção de fotografias, “A fotografia nas fronteiras culturais”, com o qual Guran ganhou o Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia, em 1997.

Em entrevista concedida à Georgia Quintas, Guran comenta a importância da antropologia em sua produção fotográfica: “O fotógrafo fotografa o que ele é, na verdade. Na medida em que ele vai se formando e se construindo como individuo, seu olhar vai sendo instrumentalizado pela sua área maior de interesse e pelas suas vivências, naturalmente. A antropologia é um campo privilegiado para pensarmos a vida, já que ela pode se conectar com praticamente todos os outros campos das ciências humanas e da arte. A prática da antropologia – que se fundamenta na observação qualificada, como a fotografia, por sinal – por um lado tem me ajudado a organizar a minha percepção do mundo, embora por outro também exerça uma pressão redutora, devido ao seu caráter científico. A grande questão é como administrar essa tensão, ou seja, como fugir da antropologia para mergulhar na vida, que é a matéria prima da minha fotografia. Como fotógrafo, eu quero ser poeta, apesar de ganhar a vida como repórter, pesquisador e professor”.

Um interessante artigo de Milton Guran, “Considerações sobre a constituição e a utilização de um corpus fotográfico na pesquisa antropológica”, foi publicado na revista Discursos fotográficos e disponibilizado integralmente para leitura.

Guran é também autor de livros de antropologia. Sobre a fotografia, escreveu também Foto + Vídeo + Arte Contemporânea, no qual analisa as mudanças decorrentes dos novos instrumentos de produção de imagem digital, equipamentos através dos quais pode-se passar do momento único escolhido na foto à escolha de momentos continuados em vídeo. 

 

LINGUAGEM FOTOGRÁFICA E INFORMAÇÃO

Autor: Milton Guran
Editora: Gama Filho
Preço mínimo: R$ 100,00 (120 págs.)

[Apenas disponível em sebos] 

 

 

 

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