matraca

Reportagem literária

13 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Seres humanos, com a ajuda de mulas, trabalhavam essa terra para que pudessem viver. A esfera de poder de uma só família humana e uma mula é pequena; e dentro dos limites de cada uma dessas pequenas esferas a essencial fragilidade humana, a chaga finalmente morta que é viver e a força indignada para não perecer, ergueram contra suas circunstâncias hostis esta casca de ferida, este abrigo para uma família e seus animais”.

fotografia de Walker Evans

fotografia de Walker Evans

Para a realização de uma longa reportagem para a revista Fortune, o repórter, ficcionista, poeta, roteirista e critico de cinema James Agee e o fotógrafo Walker Evans perpassaram as entranhas do sul dos Estados Unidos, em 1936, com o intuito de retratar os efeitos da Grande Depressão que devastava o país. Ao longo de quatro semanas, os dois conviveram intimamente com três famílias de trabalhadores rurais das fazendas de algodão do Alabama, para retratar suas condições de vida brutais e miseráveis.

A matéria nunca chegou a ser publicada na imprensa: tornou-se de uma vez livro. O texto foi reescrito, repensado e refinado ao longo dos anos seguintes e finalmente lançado em 1941 sob o título Elogiemos os homens ilustres. Seu material é de profundo interesse a um só tempo jornalístico, literário e sociológico – retrato cuidadoso e detalhado de ambientes e pessoas, entremeado por densas reflexões sobre os limites entre a observação e a representação, auto-crítica dos invasores, urbanos e cultos, na vida de roceiros analfabetos.

O interessante resultado, uma obra de realismo brutal e poético, composta com as 61 fotos em preto e branco de Evans que abrem o livro, captura a dor a falta completa de esperanças daquele cenário. É considerado o documento mais denso e corajoso da Grande Depressão. Mais que quadro histórico e social, o texto é também prova de sua própria tentativa de abarcar a realidade da alteridade com que se embate, registrando nuances de diferenças de atitudes, reações, inclusive no uso da língua; o livro, sem complacência, registra olhares, modos de caminhar, falar, comer, vestir-se, dormir, de pensar em voz alta, os odores, as casas, o clima, as limitações epistemológicas.

Segundo o escritor e jornalista Sérgio Vilas-Boas, em resenha publicada no jorna Rascunho, Elogiemos os homens ilustres é uma das narrativas marcantes do contexto daquela época, “e expressa como poucas as angústias em torno de temas como ética e moral. Seu tema central é, na verdade, a própria consciência do autor. Agee questiona seu papel como observador da “realidade”, o sentido do jornalismo, sua utilização, seu papel na sociedade, sua metodologia. […] Somada a uma energia verbal incontornável, essa preocupação exacerbada consigo mesmo, sua profissão e seu tempo conduziu Agee a uma linguagem que esfacelava as referências básicas de comunicação jornalística então vigentes (não seria exato rotulá-lo como “hermético”, embora aceitável). O tempo todo ele se interroga também sobre os limites da expansão e da colocação do nosso olhar sobre as coisas animadas e inanimadas, e avisa-nos: “descrição é uma palavra de que se deve suspeitar”.

Com tradução de Caetano Galindo, o livro, publicado no Brasil em 2009 pela Companhia das Letras, conta com posfácio de Matinas Suzuki Jr.

A editora disponibiliza um trecho para leitura.

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Por ser parte de um abismo e de um atraso similares, a falta de vasos sanitários é também de grande importância. Mas aqui eu não preciso fazer tantas ressalvas. A essas famílias faltam não só “o encanamento”, mas também as “casinhas” que jocosamente supomos ser propriedade de um fazendeiro americano, e os catálogos de pedidos pelo correio que, de novo com um estridente rirrirri, imaginamos ser o papel higiênico desse fazendeiro. Eles se retiram aos arbustos; e se limpam como podem com jornal se o tiverem pela casa, caso contrário, com espigas de milho, gravetos ou folhas. Dizer que quanto a isso eles se vêem forçados a viver “como animais” é um pouco tolo, pois os animais levam vantagem sobre eles em muitos aspectos. Direi, então, que não importando se Banheiro o Belo deve ou não ser louvado em todas as nações, não é uma vantagem para eles em um mundo “civilizado” ter de lidar com suas necessidades íntimas como o fazem os mais simples dos selvagens.

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homens ilustres

 

ELOGIEMOS OS HOMENS ILUSTRES – Um jovem escritor e um grande fotógrafo vão ao sul dos Estados Unidos para fazer a reportagem que revolucionou o jornalismo

Autor: James Rufus Agee e Walker Evans
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 46,90 (250 págs.)

 

 

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