Terra avulsa, de Altair Martins, é um romance sofisticado, em que prosa, poesia e fotografia dialogam entre si, formando a estranha história de um homem que funda um país dentro de seu apartamento. Em choque com a brutalidade do mundo, ele vive recluso em sua casa, traduzindo, ou inventando, poemas de um poeta nicaragüense. Os poemas versam sobre objetos cotidianos, que convivem com este exilado urbano.
O autor conta em seu site que Terra avulsa, seu segundo romance, é resultado dos seus “estudos no doutorado em Letras da UFRGS. Nesta narrativa, Pedro Vicente é assaltado e tem roubados os documentos. A partir daí, tranca-se, solitário, num apartamento do centro de Porto Alegre, onde funda um país de 55 m2 para renunciar ao Brasil. Patriota da avulsão, Pedro traduz poemas do poeta nicaraguense Javier Lucerna, ao mesmo tempo em que escreve, a partir de fotos de sua editora, Eudora, sobre os objetos que o cercam para preencher sua nação. Enquanto a história de sua República Doméstica corre, Pedro mergulha na memória familiar de Guaíba, buscando descobrir quem é sua mãe (Pedro foi dado pela mãe biológica, sua mãe adotiva morreu, e Izolina, uma madrinha monstruosamente feia, o criou como mãe; é a ela, também, que Pedro tenta renunciar).
Talvez Pedro me permita ver o Brasil do desvio, o que busco operar, também, em termos de macronarrativa. E não se situa aí, dos galhos narrativos, um ato de transferência de alguém sem mãe a alguém sem pátria e, portanto, de identidade perdida? Nessa medida de “orfandade”, seria possível mostrar o que Pedro, em fugindo de si mesmo e de seu país, confessa de mais pessoal e nacional na borra do que escreve e do que pensa. Por isso, Pedro e seu chão mostram-se afeitos à condição de avulsos: são um espaço e um ser sem vínculos. A belíssima orelha de Luiz Ruffato parece dialogar com essa ideia”.
O projeto Paiol Literário — promovido pelo Jornal Rascunho, em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba, o Sesi Paraná e a Fiep — recebeu o escritor Altair Martins, que, sobre a literatura, disse: “[…] eu venho desenvolvendo a idéia de que talvez a função mais importante da literatura seja sua capacidade de sabotar a pretensa realidade. Existe uma pretensa realidade e a literatura tem essa capacidade de sabotá-la, de corroê-la. A pretensa realidade é estabelecida por várias coisas, e a gente se acostuma — “isso é real, isso é normal”. E a literatura às vezes vem derrubar essa normalidade sustentada por palitos de fósforo”. Sobre o romance Terra avulsa, Martins disse estar muito satisfeito, por ter criado um narrador diferente: “Fiquei muito feliz. É um narrador que tem um humor que eu não tenho, que cria narradores. […] E fui descobrir, ao final de Terra avulsa, que tenho um projeto do qual não sabia: estou escrevendo sobre a crise da família brasileira. Esse meu narrador vive uma crise de identidade e eu fui percebendo que é da mãe. Em A parede no escuro, escrevi sobre a paternidade, que é o pilar da sociedade, desse Brasil patriarcal, e fui percebendo no novo que eu estava escrevendo sobre mãe. Fui deixando rolar. O narrador é alguém que não sabe quem foi sua mãe, ele foi dado”. Ainda no mesmo evento, sobre a mesmice crítica no Brasil, Martins apontou: “[…] vejo grandes livros sobre os quais ninguém fala nada — aquilo que eu penso que é literatura ninguém fala nada. Vejo elogio desvalido para livro comum. Não tenho problema com livro comum, só não vai dizer que o cara inovou. Vejo gente dizendo: “A partir deste livro a literatura brasileira é outra”. Como? Mostra! A troco de que ela é outra? Por que é teu amigo? Tem livro que eu não vejo acontecer”. O autor contou ainda que, como prática para não deixar de escrever, escreve em busca de um “terreno novo — que eu nunca vou encontrar. É esse o desafio: tentar encontrar um terreno novo, sabe? Buscar a experimentação da linguagem, provar que ainda tem algo a ser dito, novo. A gente pode incorrer na repetição, ou no outro erro, que é inventar por inventar. Eu sou mais atacado por inventar. Mas é isso. Tentar encontrar aquele leitor que vai abrir o livro, vai ler e dizer: “Pô, aqui tem o desafio da linguagem”. É por isso que eu escrevo: por esse desafio da linguagem. Por alguém que vai encontrar aquela ratoeira da linguagem e vai dizer: “Pô, tem alguém que se esforçou aqui para trabalhar a linguagem”.
Segundo a análise de Carlos Henrique Schroeder, este “livro desfocado e borrado como uma fotografia à deriva espia por algumas frestas gombrowiczianas: um homem que funda seu próprio país em um apartamento. É esse o movimento heróico que o tradutor Pedro Vicente, após ser assaltado por dois homens, decide seguir. E trancado em seu apartamento traduz poemas de um autor nicaraguense, e como se isso não bastasse, procura se tornar inanimado, como os objetos da sua casa (os cidadãos de seu país inventado, essa espécie de zona autônoma temporária, terra avulsa). A narrativa mistura poesia, fotografia e prosa, como uma luz que resolve se sobressair à imagem de Gombrowicz numa fotografia”. De acordo com Schroeder, a narrativa de Martins é “atravessada por camadas, que não desapontará o leitor que resolver trilhar esses inúmeros caminhos. Literatura é sobretudo risco, e Altair Martins corre todos os possíveis, e se em alguns momentos o livro parece que vai afundar, surge ainda mais vigoroso na página seguinte, numa experiência cíclica e enviesada. E tudo num complô contra a literatura, pois a arte perturba os satisfeitos e satisfaz os perturbados, como já disse o sábio senhor da fotografia acima [Gombrowicz]”.
De acordo com José Castello, Altair Martins é “um dos mais surpreendentes escritores de sua geração. O que Terra avulsa, enfim, só vem reafirmar”.
Autor: Altair Martins
Editora: Record
Preço: R$ 45,00 (380 págs.)