Crítica Literária

Ó: uma palavra quase corpórea

20 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone
Nuno Ramos

Interjeição, demonstrativo, ó miúdo asma-nome, bocejo, som muito agudo, zumbido de vespa, ó da morte e do esquecimento, também aí há um ó.

O livro de Nuno Ramos ramifica-se em multiplicidades semânticas desde o título. A rapsódia do seu Ó começa com o próprio labirinto desta letra palavra tão ambivalente, por vezes quase material, num dedo que aponta, ou substantivada para expressar desdém, ou como prelúdio a uma resposta inesperada e não convencional. Ó: uma palavra quase corpórea, quase sempre indicial. Encabeçado por ela – que mesmo só é palavra na medida em que compreendida num contexto cultural popular –, o livro de Nuno Ramos é sensorial.

Em primeiro lugar, pelas imagens que cria, inusitadas e precisas, capazes de suscitar sensações minuciosas. Os textos que compõem o livro são repletos pela naturalidade do gesto que reconhece o corpo como referência de relação com o mundo, pela percepção que passa antes pelo olhar, pelo toque, pela digestão e que, somente então, atinge a ideia. Uma corporeidade primeira. O título do primeiro capítulo, “Manchas na pele, linguagem” marca a sensorialidade dupla que o livro abarca, que reverbera-se ao longo do livro e desemboca na passagem do último capítulo: “Pergaminho. É isso. Areia. Somos pergaminho, areia. Sofremos a compreesão contínua dos outros corpos no nosso, que vão imprimindo ali uma forma de escrita que ninguém vê e depois se apaga sozinha”. O corpo é linguagem que se trava com o mundo. Envelhece e morre, desconforma-se, decadente; o corpo marca o tempo que por ele passa, plasma em si múltiplas respostas ao que são as horas. A vida corpórea é reminiscência tateante do tempo.

Capa do livro Ó de Nuno Ramos, publicado pela Editora IluminurasEntre observações satíricas e a extrapolação poética da representação, Ó é também sensorial, em segundo lugar, por possibilitar-se metáfora da linguagem. A materialidade corporal e a materialidade sensível das ideias interiorizam a remota realidade do sujeito – criam, usando as palavras de Jorge Luis Borges, “noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variação com repetição ilimitada”, inesgotável leitura da linguagem do mundo. O polimórfico Ó desdobra o que há de mágico na linguagem e resguarda um reino dos simulacros e dos reflexos – enquanto simulacro, a linguagem é o próprio símbolo da materialização da ideia, plasticidade que interioriza as condições de realidade vivida, ou como diria Deleuze, “é a instância que compreende uma diferença em si”.

Aqui a prosa de Nuno Ramos coloca-se entre o paradoxo da linguagem – mágica e, portanto, infinita, é símbolo do comunicável e do não-comunicável, não é imitação do mundo, todavia, o representa – e a dignidade subjetiva ontológica da materialidade do corpo, túmulo do tempo. A linguagem, enquanto abstração e matéria sensível da ideia – localizada entre o mundo visível e palpável e o discurso da natureza, oculto, quimérico, de uma transparência primeira que deixa, porém, marcas decifráveis –, desdobra infinitamente esse ponto de ambivalência material em que o livro se localiza, numa abertura labiríntica e poética.

A violência da linguagem rebate a força do “texto dissipado por tudo”. Como a hipótese lúdica e irônica do primeiro capítulo, a sugerir que os primeiros homens talvez pudessem ter se dividido entre “seres linguísticos e heróis mudos”, heróis mudos que

mover-se-iam entre alfabetos físico perceptíveis aos seus cinco sentidos (e ler talvez constituísse um sexto, que reunisse e desse significado aos demais), e cada cor seria música e cada música seria mímica, e cada gesto seria um texto. […] Talvez um grande cataclisma – um terremoto, um meteoro ou um incêndio – tenha transformado a tal ponto a matéria que os cercava que acabou por emudecer para sempre este texto físico, obrigando à sua substituição. […] Procuraram então marcar, para cada coisa que sumira, um som próprio, que a substituísse e presentificasse, ainda que de modo incompleto. […] Se ao invés de tornarem-se ventríloquos das coisas tivessem transformado as próprias cinzas, a terra deserta, o maucheiro de tantos bichos mortos, expostos ao céu e à risada das hienas, se tivessem transformado as próprias hienas em sujeito e predicado de seu mundo moribundo. […] Então seriam parte deste caos, desta correnteza de lava e de morte, mas trariam a cabeça erguida, seus passos teriam o tremor do terremoto que os aniquilou e sua risada a potência do vento lá fora”.

O impasse resolve-se na dimensão artística que anula a diferença entre linguagem e mundo, na qual ambos tornam-se repletos de sentido, como em um sonho, em que há sentido inclusive no nonsense. O corpo e a percepção individual respondem e referem-se à voz das coisas no mundo, ao que há de potencial nas experiências fundamentais como um todo, o qual apreendem e corporificam como pura atualidade – coisas e símbolos se misturam: “Uma colagem sem pedaços dos tecidos que me cercam”. O livro de Nuno Ramos resguarda do discurso artístico o surgimento da obra como signo das relações de pensamento que institui, a própria expressão da relação entre a potencialidade simbólica e o conteúdo intuitivo que a desperta. José Paulo Pasta, no texto de orelha do livro, analisa, com clareza e precisão: “[…] neste Ó, ao se instalar nessa zona de arrebentação da linguagem, onde fluem e refluem, presentes a ausentes, todas as molduras dos antigos gêneros literários e das modalidades do discurso, Nuno traz com força para as letras aquela experiência da perda da evidência do sentido da arte, que as artes plásticas radicalizaram a um ponto a que resistem, em sua natureza, a linguagem verbal articulada e a literatura como instituição”.

A sensorialidade, a corporeidade pungente das imagens que o autor cria, coloca em questão a percepção dos corpos no mundo, do tempo, das representações. Seu livro é um lugar de ensaios sempre renovados. Sua narrativa é errante, extravasando em fantasias e epifanias o monólogo interior que traduz o mundo para si. Suas imagens contêm uma agressividade confirmada por uma imediata veracidade ao elevar a condição animal de nossa humanidade e a colocar em choque com ressalvas morais castradoras: o livro as embate. Fome, desejo, raiva – é em estado bruto que os instintos e reações naturais do corpo são colocadas.

Sei bem o que me dizem: não espalhe a doença. Não te lance do alto. Não repita teu salto. Não cofie. Não chute teu pombo. Quem te fez, fez o trigo – e o espantalho submisso. Mas não tenha medo das aves. Quem te fez, fez faminto.

A sensorialidade plama-se nas palavras como comentários irônicos e ácidos sobre a circular transformação da natureza que progressivamente transforma a humanidade – sôfrega, animalesca, trágica, visceral, mortal – e que permeia o “vício do relógio”: “Quem transforma a vida num ofertório de instantes, quem lança ao mar as horas e o tambor constante é o herdeiro de uma alegra antiga, cobrindo-se de luto e de tinta preta para descansar, e través da música e das imagens recolher-se, em meio aos gritos do feroz sargento que diz Acorde, Deseje, Martele, Produza, e contemplar a imagem calma, azul-escura, depois da chuva”. A imagem é a da cena forte, concisa, escura, acompanhada por urubus entre a rua e calçada, talhada entre pequenos traços, de uma gravura de Goeldi. Como ele, Nuno tem neste livro o tom um pouco pessimista, desolado, de um realismo duro e desconforme. Entre afazeres miúdos e protuberâncias irônicas de felicidade, solidões rotineiras – “um sono feito de matéria e não de símbolo”; uma percepção literal e metafórica que abarca a dimensão coexistente de vida e de morte, a atravessarem-se mutuamente, guarda a redenção do sentido da matéria e do corpo, alargado ao infinito em meio a fantasias, tardes agonizantes e às ambiguidades insolúveis do tempo torturante.

Então transborda para mim o que carregam dentro delas e sinto o gosto de nanquim em minha boca, e a borra de uma tinta preta em meu pensamento. Uma figura sai de dentro de um bueiro […]. Sou feito talvez da mesma matéria destes seres, de sua luz e seu balão, mas não comungo ainda dessa tristeza plena, sólida. Ainda pertenço a uma esperança que já não há para eles, de que possa acordar e permanecer ativo, feito de carne e de aplauso, de que possa me juntar à plateia e voltar”.

 

Ó
Autor: Nuno Ramos
Editora: Iluminuras
Preço: R$ 30,80 (289 págs.)

 

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