Askhmata

Retórica interior

20 fevereiro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

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Askhmata

Esquemas de percurso, exercícios: ancoragens marcadas em uma carta náutica literária, imaginária. Alheias às exigências profissionais de decoro, desenham memórias de leituras.

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SHAFTESBURY, Askhmata

[Editora Unesp, tradução e organização de Pedro Paulo Pimenta]

 

Desenho de Rafael [Homem jovem carregando homem velho nas costas]

 

Shaftesbury – Anthony Ashley Cooper, III Conde de Shaftesbury – é um daqueles filósofos cujas ideias tornaram-se freáticas; pouco comentado atualmente, desenvolveu reflexões que foram base para o desenvolvimento da filosofia moderna.

Estes exercícios investigativos são o testemunho vivo da formação de um filósofo.

Os escritos são permeados por pequenos diálogos, arguições com um interlocutor, que ajudam o autor a testar e fortalecer suas teses.

São exercícios de uma reflexão de cunho estoico, que contêm em germe noções e conceitos que Shaftesbury desenvolveria com mais profundidade na obra Characteristicks of Men, Manners, Opinions, Times e, porteriormente, em Second characters; or, The language of forms.

Os exercícios buscam a compreensão e disciplina das paixões para a formação do caráter.

De acordo com Márcio Suzuki, como analisa em seu artigo “Quem ri por último ri melhor – Humor, riso e sátira no ‘Século da crítica’”, publicado pela revista Terceira Margem, publicação da UFRJ: “A razão, em Shaftesbury, é sempre uma razão dialética, dialógica:

‘(…) de acordo com a noção que tenho de razão, nem os tratados escritos do erudito, nem os discursos do orador são capazes, por si sós, de ensinar o uso dela. Somente o hábito de raciocinar pode fazer o arrazoador. E não se pode convidar melhor os homens a esse hábito do que quando têm prazer nele. Uma liberdade de zombaria, uma liberdade de questionar tudo em linguagem conveniente e uma permissão de desembaraçar e refutar cada argumento sem ofender o argüidor, são os únicos termos que de algum modo podem tornar agradáveis as conversas especulativas’.

Se bem se entende esse trecho, fica claro que a conversa agradável e desimpedida com pessoas igualmente francas não é apenas o que propicia o uso correto da razão, mas, no sentido rigoroso, a própria razão. Quanto mais freqüentamos pessoas polidas, tanto mais livres nos sentiremos para o verdadeiro exercício da razão. O hábito da conversa nos dá a rapidez requerida para não nos deixar tomar de assalto pela paixão. Em seu ponto máximo, a razão se revela na lúcida e inexplicável lepidez de um resposta imediata e surpreendente pelo brilho, de um dito espirituoso, de um chiste, enfim, de todas aquelas conotações que a língua inglesa reserva ao wit:

‘Em matéria de razão, mais se dá em um minuto ou dois, por meio de questão e resposta, do que por um discurso corrido de horas inteiras’.

Tornamo-nos melhores no raciocínio se o exercitamos de maneira prazenteira (pleasantly), com leveza, tranqüilidade e conforto (at our ease)”.

 

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“Ou isso que chamamos afecções naturais e que demonstramos ser da ordem da natureza nesse particular o é, no entanto, total e unicamente por acaso, e não propriamente por desígnio; ou o é por um desígnio todo-poderoso, sábio e perfeito. Na primeira alternativa, devemos considerar outras questões, para ver se uma opinião como essa se sustenta. Na segunda, segue-se que, além da relação com a espécie, toda criatura tem ainda outra relação viz. COM O TODO DAS COISAS enquanto administradas por uma vontade ou lei suprema que regula todas as coisas de acordo com o sumo bem.”

A intenção e o desígnio natural.

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“Se houver um progenitor supremo, um pai comum aos homens e a todos os outros seres, e se todas as coisas acontecem de acordo com a vontade desse progenitor, segue-se que tudo deve ser aceito com tranquilidade e naturalidade.”

[nota do tradutor: “Kindly, em inglês. Como adjetivo, ‘o que pertence à natureza das coisas’; como advérbio, ‘o que está de acordo com a natureza’. Este último sentido, utilizado por Shaftesbury, é complementado pelo sentido ‘maneira generosa, simpática, benevolente, considerada, afetuosa’. Naturalidade é a disposição afetuosa com que uma criatura aceita o que a natureza impõe a ela”]

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“Se o universo for como uma cidade e as leis dessa cidade forem perfeitas e justas, segue-se que tudo o que acontece de acordo com as leis dessa cidade deve ser bem-aceito e estimado. E como tudo o que é só pode ser de acordo com essas leis, devo aplaudir com a mais sincera afeição, e acompanhar com minha mente, tudo o que acontece.”

[nota do tradutor: “Em inglês, to accompany, no sentido musical: uma segunda voz que acompanha a principal em consonância com ela”]

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“Sendo assim, as demais afecções devem ser submetidas. Eis a nova ordem: a nova economia, que pertence a outro grau.”

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“Como pode a afecção de alguém se manter em devida ordem? Como ter presença de espírito, em meio a tamanha convulsão e desordem?”

“Ora, como se consegue isso? De que modo podemos ser ou não afetados como nos cabe e de acordo com a natureza? – Das coisas que são, algumas se encontram sob nosso poder e jurisdição: outra não. ‘Das coisas que são, algumas dependem de nós, outras não’. – Isso é tudo. É tudo o que importa. Nada importa além disso. Disso, tudo depende. E exige esforço, cuidado, disciplina, o ‘desprezo pelas coisas que não dependem de nós’.”

[Shaftesbury cita Epiteto, respectivamente, I, 1 e XIX, 2]

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“Se, ao contrário, eu adiro ao que é natural, e por essa razão, porque é natural; então a NATUREZA é para mim um objeto de afecção. Se a natureza é mesmo um objeto, poderia ela ser outro objeto que não o mais sumo objeto? Sendo ela o mais sumo objeto, renegá-la [disaffect her] é ser sumamente desnaturado.”

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“Uma mente que se recusa a consentir o que acontece no todo, e é para o bem do todo, é como uma mão que se recusa a agir pelo corpo. O que é uma mão? – Uma parte feita para o uso e a conveniência do corpo. O que sou eu? – Um homem. – Mas como assim um homem? Ateniense? Romano? Europeu? Isso é é tudo? – Não: um cidadão do mundo. Isso é ser homem. Significa isso a natureza do homem. – Como é então que eu faço a parte de homem? – Como me faço romano? Preferindo o interesse de Roma. – Como me faço homem? – Preferindo o interesse do mundo. E como preservar o interesse do mundo e sentir raiva e insatisfação com o que acontece com o mundo? Considera, portanto: o que me dá aversão a qualquer coisa do gênero; o que dá ensejo á relutância. Não importa que afecção é essa; se por um corpo, se por amigos, se por um filho, se por uma cidade: ela é o que me torna desnaturado; é ela, em mim, o oposto de afecção natural.”

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“Os elementos estão combinados, unidos, têm mútua dependência entre si. Todas as coisas neste mundo estão unidas.”

“Vê a mútua dependência, a relação de uma coisa com a outra; do sol com a terra, da terra e dos planetas com o sol; a ordem, simetria, regularidade, união e coerência do todo.

Segue-se, portanto, que assim como a planta ou a árvore têm uma natureza, o mundo ou o universo devem ter uma natureza; e aqui surge a questão: que sorte de natureza seria essa?”

“As coisas são finitas ou infinitas: se infinitas, isso que chamamos o todo é infinito; se finitas, o que existe continua sendo o todo. A próxima pergunta é: qual a natureza do todo? É como a de cascalhos ou grãos de areia? Se fosse assim, o que permanece eternamente como a sua natureza não poderia jamais dar origem a outras naturezas ou princípios que podem se unir e conspirar juntos, como plantas, vegetais, corpos animais e outras coisas similares. […] De que modo iria ela extrair percepção a partir de si mesma, a não ser que a encontrasse em si mesma? Portanto, a natureza do universo é inteligente.”

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“Ou o todo […] não é unido como o mundo que vemos, e nesse caso deve haver um princípio eterno inteligente ou muitos deles, OU então o todo das coisas infinitas está unido e é um mesmo. Neste último caso, segue-se que há um princípio comum de inteligência e sabedoria, uma mente eterna e infinita.”

Simpatizar, o que é? – Sentir junto, estar unido num mesmo sentido ou sentimento (sense or feeling). Os membros do corpo animal simpatizam. E os corpos celestes, simpatizam? E por que não? Porque não temos consciência desse sentimento. – Tampouco temos consciência de nenhum outro sentimento a não ser dos nossos próprios. Se é verdade, porém, que os outros simpatizam, os corpos celestiais (mais unidos e em mais harmoniosa conspiração do que a planta ou o corpo animal) também devem simpatizar. Se houver um simpatizar do todo, haverá uma percepção única, uma única inteligência do todo. Se for assim, então todas as coisas são percebidas por essa inteligência. Portanto, há uma natureza onisciente e sumamente inteligente.”

[nota do tradutor: “Trata-se aqui de uma variação da ‘teoria da simpatia cósmica’, desenvolvida por Platão no Timeu (30d) e que, segundo Peters, resulta no “panteísmo estoico. Deus, como logos, impregna o universo como a nossa alma impregna os nossos corpos e tal como a physis vitaliza o todo. Assim, o kosmos é uma unidade, um organismo mais do que uma totalidade, um ser vivo racional”. Termos filosóficos gregos, p. 220-1]

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“[…] o que poderia nos levar a crer que alguma coisa percebe e age? Só poderia ser isto: um conspirar ou harmonizar de partes; uma conduta regular para o bem do todo; uma sólida administração, conveniente a um único fim ou desígnio. E aqui surge a questão. O sistema das coisas que vemos, e com ele o todo das coisas, ou é assim ou não é assim. Se for assim, traz as marcas de uma mente, tem uma mente.”

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“Ou o homem é feito com um desígnio ou é feito sem um desígnio. Se sem um desígnio, segue-se necessariamente que não há FIM no todo ou em qualquer uma das partes do homem; e então músculos, veias e artérias não têm desígnio nem foram feitos com um propósito e não se pode dizer que sirvam a algum propósito. Mas se isso é falso e essas coisas foram feitas com um fim; se foram desenhadas e têm, cada uma delas, o seu fim, então deve haver, em alguma parte do homem, um fim último e terminativo.”

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“Se […] houver certas disposições da mente tais que plenamente se refiram a uma espécie e sociedade e ao desfrute da convivência, da mútua aliança e da amizade; então o fim do homem é a sociedade; e, portanto, servir a esse fim social (ser bom e virtuoso); é isto a que tudo no homem se refere como fim e constitui propriamente o seu FIM. Onde estiverem o seu fim e perfeição, ali estará certamente o seu bem.

O fim e o desígnio da natureza no homem é a sociedade.”

“Quem persegue o prazer como FIM não sabe o que quer, pois coisas contrárias o solicitam, o que agora é prazer depois se torna desprazer e as coisas de que depende o seu prazer não dependem dele mesmo. Quem persegue a virtude como um fim sabe o que quer e nunca se sente perdido e os bens que persegue estão ao seu alcance”.

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“E no caso do homem? Estaria a sua perfeição no invólucro (‘ou na concha’)?”

[Shafestbury cita Arriano, I, 20, 17]

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“Considera as sucessivas épocas da humanidade; as revoluções do mundo; o surgimento, a decadência e a extinção das nações, uma após a outra; a maneira com que o globo terrestre é habitado; às vezes numa parte, às vezes noutra; primeiro um deserto, depois o cultivo, de volta ao deserto. De florestas e selvageria a cidades e cultura, de cidades e cultura de volta a florestas. Ora bárbaro, ora civilizado, depois bárbaro de novo. Após trevas e ignorância, artes e ciências; de novo trevas e ignorância, como antes”.

“Que aspecto diferente o das coisas! Dentro em breve, tudo isso também irá mudar; depois novamente; e após muitas revoluções, voltaremos ao mesmo. Nada é novo ou estranho. O que hoje irá desaparecer em algum momento voltará a ser: o que é hoje será tal como era antes”.

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“Se a sabedoria do todo quiser assim; também devo querer assim e não de outro modo: se quero de outro modo, deixo de ser livre: deixo de ser aquela mente generosa e arrebatada, que aspira [aims at] ao que é excelente e melhor; que aspira não de modo a se frustrar, mas sempre com êxito, prosperando; nunca forçada ou constrangida” – Economia do todo.

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Formação do caráter.

“Não deixa que a conversação, cerimoniosa ou leve, que a jocosidade e a jovialidade entre amigos, ou outras coisas do gênero, deem ocasião para que te esqueças do que deves te lembrar ou para que relaxes a fixa atenção. – Mas como me portar em companhia? Qual será minha figura na conversação? – Perigosas consequências! O que temes? – Que me chamem de mal-educado; que me julguem sem graça, que eu não mereça o nome de bom companheiro. – Não é melhor merecer o nome de amigo? Não é preferível ser justo, íntegro, fiel e puro a ser um homem amigo dos homens? Sabes muito bem o que depende disso. – Mas se eu não me deixar levar, como poderei mostrar prontidão e dedicação na defesa do bem público ou de um amigo? – Se essa parte não for condizente com a preservação de um caráter, não deves assumi-la; se for consistente, mas com outra pessoa e não contigo, pois és mais fraco, por que aceitar uma parte se estás aquém dela (‘se ela está para além de seu poder’)?”

[Shaftesbury cita Epiteto, XXXVII]

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“- Mas a aplicação contínua é tediosa e fatigante. Não haveria descanso? Ou indulgência? Intervalos ou relaxamento? – Aqui, deves gritar a plenos pulmões, ‘não amas a ti mesmo!’ É aqui que podes dizer com justiça que não sabes amar a ti mesmo nem a teu próprio bem. O que mais no mundo, além disso, poderia te contentar? O que mais poderia te salvar da miséria? Negligência; preguiça; omissão, descaso; poderias ser mais cruel contigo mesmo?”

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Submeter as ideias ao teste. “Vê como ela reage.”

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“Que a experiência te ensine o que significa vagar por aí e suspender indefinidamente uma tão incipiente superintendência e cuidado de si: para gratificar os outros; para conquistá-los ou mantê-los; para reformá-los ou corrigi-los. Vê qual o efeito disso, o que acontece. Primeiro, perde-se imediatamente a atenção (aquela atenção fixada num escopo ou fim). Os bons hábitos, que haviam se incumbido da mente a que protegiam como guardas fiéis, são dispensados. As boas afecções, inclinações e declinações são relaxadas, e seu vigor é transferido para as de gênero contrário. Os sentimentos, pensamentos, movimentos, sensações, meditações, raciocínios, reflexões, a correta modificação das aparências, o uso e administração dos objetos, tudo isso, e tudo o que é propício a um estado saudável, perde-se com essa suspensão, ou torna-se pesado, lânguido, vagaroso, sem espírito. A solitude torna-se um fardo; o poder de entreter-se a si mesmo é inócuo. Daí o aumento da propensão a distrações e a exercícios errados: essa espécie de compromisso põe tudo a perder; e o que era apenas um relaxamento redunda em total dissolução.”

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“Se não houver fim, se não houver medida, se não houver regra; resta a pura loucura. Se houver tais coisas, então é loucura tudo o que viola sua regra.

Se eu dispensar minha regra; se eu perder meu fim; a que poder, a que faculdade recorrerei para garantir essas coisas quando as quiser de volta?”

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“A perfeição de porte e maneira está entre o descuido de um que não se importa em ofender os outros e o obséquio de outro que só quer agradar. Isso é simplicidade. Afetação há de um lado como de outro.”

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Imitação, gesticulação e ação no discurso; diferentes tons de voz; contorções da face; torneios de linguagem inusitados e humorísticos; frases e expressões para agradar os outros, para animar uma estória, reforçar um argumento ou fazer com que sintam o que se quer que eles sintam. Tudo isso é totalmente errado; é estridente, dissonante, desmedido, fora de tom. O que é veemente, impetuoso, turbulento, só pode ser assim: como tudo o que beira a macaquice, a bufonaria, a caricatura.”

[nota: “O riso é um prazer que pode às vezes ser empregado contra esse mesmo mal e contra a pompa ridícula solenidade das coisas humanas; mas nada é mais arriscado ou mais difícil de administrar. Ele pode ter serventia e convir a quem ainda não se emendou e se encontra no caminho do aprimoramento: mas, para convir a quem entende a si mesmo, deve ser de um gênero bem diferente: basta dizer que permanece totalmente incontrolável enquanto houver no temperamento um resquício de impotência ou algo de minimamente involuntário ou que escape ao perfeito comando; quanta força de vontade, constância e firmeza isso implica; compreende-se facilmente.” Paixões, caderno I]

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“Filósofo! Quais as tuas ideias? Onde a verdade, a certeza, a evidência de que tanto falas?”

“Dá-nos o metro e a regra. Vê se essa não é a regra do filosofar: e se, deliberadamente ou não, todos não filosofam. – Qual é a diferença? Quem filosofa bem e quem filosofa mal? – Pesa e considera. – Mas o exame é difícil, prefiro passar sem ele. – Quem disse? – A razão. – Que polimento deste à tua razão, como te dedicaste a ela, como a exercitaste nesse objeto? Ou dirias que é indiferente se a exercitaste ou não? Qual razão é a mais verdadeira, na matemática: a de quem é exercitado ou a de quem não é? E na política, e na sociedade? E na medicina ou em qualquer outro objeto? Como esperar vida e moralidade?

Tal é a fundação da filosofia. Se cada um raciocina e não pode deixar de fazê-lo sobre a própria felicidade, sobre o que é o seu bem e o que é o seu mal, a única questão é saber quem raciocina melhor. Pois mesmo quem rejeita essa parte raciocinante ou deliberativa o faz por alguma razão e por estar persuadido de que é o melhor para si mesmo”.

Shaftesbury utiliza o termo aristotélico “proaíresis” que, segundo Peters [op. Cit.], como indica nota do tradutor, é “um apetite guiado pela deliberação (bouleusis), para coisas dentro de nosso poder. A escolha é sempre de meios; apenas o desejo (boulesis) se dirige para um fim… Com Epiteto, a proaíresis se tornou uma vez mais central; [e a condição da liberdade do homem. É precedida pela diairésis, a distinção entre o que está em nosso poder e o que não está, e a própria proaíresis se parece mais com o juízo do que com a escolha”.

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[nota: trecho da obra shaftesburyana Solilóquio, I, 2: “Poder-se-ia pensar que nada é mais fácil do que conhecer nossa própria mente e compreender qual nosso principal escopo, aquilo para o que nos dirigimos, o que propomos a nós mesmo como nosso fim em meio às ocorrências da vida. Mas nossos pensamentos têm geralmente uma linguagem implícita tão obscura que a coisa mais difícil do mundo é fazer com que se pronunciem distintamente. Por essa razão, o método correto é dar-lhes voz e acento”.]

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O correto uso de ideias e aparições “é a arte e o método a serem aprendidos: como colocá-las em palavras, para poder raciocinar com elas; para forçá-las a falar, para entender a sua língua e responder a elas. Tal é a retórica e engenho que devemos afetar.”

Retórica interior interpela fantasias e origina o discurso.

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“Começa agora, portanto, de novo: de novo mesmo: não como antes, não ‘medindo seus esforços’, não ‘sem coração’. Saiba qual é a tua obra: qual o teu objeto, a tua matéria, os teus instrumentos, as tias regras. […] Por que esse eterno florear, desenhar, figurar? Para quê? – Unicamente para a arte. Não para ser exibido: mas para o exercício, a prática, a MELHORIA… Escrever e depois queimar. Desenhar e apagar. Giz, parede, lousa, o que estiver à mão… […] Aplica-te, portanto. Exercita. Escreve. Compõe. Põe à prova.”

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“Haveria no mundo coisa mais bela, ou que com tanta perfeição oferecesse uma ideia sensível do to kalon [belo], do que ver uma república ou cidade igualitária, fundada sobre boas leis? Uma constituição bem-feita, protegida contra violação, internas ou externas, por uma legislatura e uma milícia Um senado que propõe, debate, delibera; uma assembleia popular que resolve, vota; uma magistratura eleita, que executa? … E isso tudo para que? Para que essa precaução? Qual a razão de uma estrutura tão bela, graciosa e admirável? E se não houver mais tiranis, ambição, paixões e apetites humanos?”

[nota do tradutor: A república como símbolo sensível do virtuoso e do belo reaparece na Carta sobre o desenho (1712), passim.]

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Sobre a polivalência do título dos cadernos, Askhmata, na apresentação a esta cuidadosa edição brasileira, o tradutor e organizador, Pedro Paulo Pimenta, fornece a seguinte explicação:

“A palavra grega que dá título aos cadernos de Shaftesbury, askhmata, além de significar ‘exercícios’, tem outras importantes acepções complementares, que vinham sendo formuladas no pensamento antigo desde Platão e Aristóteles. Para este, como explica Auerbach, o termo schema designa ‘o modelo puramente perceptivo’ das representações, por contraposição a ‘eidolos, ou ideeia, que informa a matéria’. Posteriormente em latim, aduz esse estudioso, ‘forma’ veio a designar eidolos, enquanto ‘figura’ foi reservado para schema. Essa oposição está longe de ser simples. como complemento da exposição de Auerbach, lembremos aqui a explicação de Maria Luisa Catoni, que chama a atenção para o duplo sentido do termo schema ou figura. Por um lado, um esquema é ‘um meio através do qual se reconhece um personagem, real ou representado, numa estátua ou no teatro, é um meio através do qual o naturalista classifica os animais, as plantas, os planetas’. Mas nem toda representação é verdadeira, e esquema se refere também a processos de ‘confraternização e travestimento’ das representações, processos esses típicos de uma sensibilidade ainda fortemente marcada pela natureza animal, despreparada, portanto, para a percepção adequada das representações”.

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