– Vá embora – disse Sandra, mas deixou a porta aberta.
Arrecife, de Juan Villoro, conta a história de Tony Góngora, que, tendo perdido boa parte da memória em consequência do abuso de todo tipo de drogas na juventude, aceita o convite de seu melhor amigo, Mario Müller, para trabalhar num resort no Caribe mexicano. Lá, tornou-se conhecido por oferecer aos clientes uma experiência extrema: o perigo controlado. Os turistas passam a ir ao luxuoso hotel dispostos a encarar situações-limite e violência em pequenas doses, numa programação recreativa que inclui sequestros-relâmpago e encontros com guerrilheiros. Até que um mergulhador do hotel aparece morto com um arpão atravessado nas costas. Uma história de crime, de amizade, amor e redenção.
A narrativa acontece em dois planos: um, o México dos anos 60, 70, da contracultura; outro, nos dias de hoje, no país em que o turismo rompe limites. O livro é político e questiona o turismo narcótico que, em última instância, Villoro entende como uma busca por perigo.
O autor, uma das atrações da FLIP deste ano, também veio ao Brasil para cobrir, com suas conhecidas sarcásticas crônicas, a Copa do Mundo para jornais como o “Reforma”, do México, do qual é colunista. “Torcer para um time não está relacionado a vitórias. Nós, mexicanos, não ganhamos nunca torneios importantes, mas estamos entre os mais fanáticos do planeta”, disse ao jornal Folha de São Paulo.
Villoro é hoje o principal escritor mexicano. Escreve para revistas literárias como Letras Libres, revistas de crônicas tais como Etiqueta Negra, e para o jornal El País, da Espanha, além do Reforma. Venceu o prêmio Herralde em 2004 e acaba de assumir cadeira no Colegio Nacional.
Arrecife, publicado pela Companhia das Letras, foi traduzido por Josely Vianna Baptista.
A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.
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Trecho:
Avistei uma lagartixa transparente na parede. Tenho um fraco por lagartixas. São uma esplêndida companhia para um viciado. Quando a gente alucina, a presença de um inseto se torna intolerável e quase todas as espécies representam uma ameaça. Mas as lagartixas se movem com graça e brilham no escuro. Eu via o movimento delas como a expressão gráfica de minhas ideias. Naquela época, minhas ideias eram poucas, mas as lagartixas (velozes, azuis, amarelas, verdes) me faziam pensar que eram muitas.
O Gringo Peterson gostava de ouvir relatos de minha condenação alucinógena. Seu melhor amigo morrera no Vietnã, rasgado de cima abaixo por uma baioneta. Na guerra do napalm, caiu num combate corpo a corpo, como um cherokee. Seu segundo melhor amigo voltou de lá viciado em heroína. “Nunca fui a Saigon”, dizia o Gringo. Era obcecado por esse assunto. Parte do meu cérebro tinha sido detonado pelas drogas. Ele gostava que eu lhe falasse de alucinações e de noites que eu não recordava direito. E me ouvia como se eu também tivesse vindo do Vietnã.
É difícil relatar o que a gente perdeu, mas ele se conformava em estar perto de alguém que tinha afundado. “Você já saiu”, dizia de repente: “isto aqui não é o Nam, é a porra do paraíso.”
Era bom ver um magnata desprezando o luxo de seu hotel. Peterson usava camisas em tons claros compradas na Sears. Tinha o cabelo cortado à escovinha. Seus braços musculosos, cobertos de pelos avermelhados, sugeriam exercícios extenuantes. Seu porte tinha um quê do militar que não conseguiu ser. Não o recrutaram por um problema de vista.
Bebia um uísque muito mais barato que o de Mario. Nas sessões de Four Roses ele perguntava detalhes daquela minha vida bandida, com uma curiosidade nobre, alheia à compaixão. Seus melhores amigos tinham tombado. Não era um patriota anticomunista. O Vietcong pouco lhe importava. Simplesmente, sua vida tinha um fundo trágico. Era um sobrevivente.
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Autor: Juan Villoro
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 39,50 (240 págs.)