“São eles próprios mundo, realidade, destinados a segregar, em cada um de seus atos, mais mundo, mais realidade, são, mais ainda, o próprio presente, que à medida que se desloca vai criando mais presente, e ao mesmo tempo, sem perceber, afundando-nos no passado”.
Quando faleceu, em junho de 2005, vítima de um câncer de pulmão, o argentino Juan José Saer terminava de escrever os últimos capítulos de sua novela mais extensa, O grande. Nem por isso o romance é considerado inacabado. Composta por sete capítulos, cada qual correspondente a um dia da semana, a narrativa começa numa terça-feira e acaba na segunda-feira posterior à esperada grande reunião de domingo. O último capítulo, interrompido pela morte do autor, é um arremate para os encadeamentos de indagações de longo fôlego do encontro de seu dia anterior: a frase que o inicia e o conclui, retumba significados de um tema recorrente neste grande escritor – a poesia do tempo que passa, que dá o ritmo próprio à sua literatura: “Com a chuva chegou o outono e, com o outono, o tempo do vinho”.
Segundo o professor de literatura da USP Adriano Schwartz, em resenha escrita para o jornal Folha de São Paulo, “A frase é por várias razões o final ideal para o romance, como aliás já sugere uma de suas epígrafes: “O que era firme resvalou, e apenas/ o que escapava permanece e dura” (Quevedo). Em primeiro lugar, porque o tempo e a incompletude, as repetições distorcidas (de personagens, de situações), os silêncios e as ausências são algumas das marcas fortes presentes em uma obra construída com rigor ao longo de décadas, na qual se destacam criações como “Ninguém Nada Nunca” ou “O Enteado” (publicadas no Brasil também pela Companhia das Letras)”. Para Schwarz, a “ideia de algo que não pode acabar, além disso, está presente na própria arquitetura do texto”.
Conforme analisa o professor Gregório Dantas, em resenha publicada no Jornal Rascunho, “pode-se dizer que um dos temas mais importantes do romance é precisamente o tempo. Mas o tempo não se escreve, não se submete às palavras. É como o gosto do vinho. Nula sabe que explicar para um freguês as nuances de paladar de um bom vinho é impossível: “as sensações”, reflete, “considerando do ponto de vista filosófico, são incomunicáveis”, de modo que só lhe restam metáforas e comparações. Talvez pudéssemos dizer o mesmo sobre o tempo. Saer não busca defini-lo, mas o demonstra através de personagens complexos, imagens poderosas e uma escrita nunca menos que sofisticada”. Também o tempo narrativo torna-se metafórico sob a pena do argentino, segundo a interpretação de Dantas: “Se não infinito, o tempo narrativo pode seguramente, sob o controle hábil de Saer, estender-se ou expandir-se. Os devaneios dos personagens permitem que em poucas páginas ouçamos diferentes vozes, vindas de tempos distintos, narrando diferentes eventos que se sucedem não fragmentariamente, de maneira truncada, mas em períodos longos e caudalosos, de um tecido narrativo bem urdido. Essa urdidura faz do passado não uma sombra do presente, mas parte dele. O passado não se perde, e se faz notar em cada gesto, em cada diálogo”. De acordo com o professor, uma das qualidades de Saer é tratar de maneira tangível o assunto abstrato de que fala: “imagens fortes permeiam todo o romance, e impedem que o discurso filosófico se perca na pura abstração, mas se materialize em imagens insuspeitamente poéticas”.
O livro é lírico e profundo. Articula a legitimação da linguagem sobre sua própria arbitrariedade, comprovando a interpretação de Beatriz Sarlo, de que, em Juan José Saer, “problemas filosóficos e estéticos e questões sobre a possibilidade da representação da realidade, antes que delineados ou transmitidos nos diálogos, aparecem como performance narrativa”.
No Brasil, O grande foi publicado no Brasil em 2010, pela Companhia das Letras, sob tradução de Heloisa Jahn. A editora disponibiliza um trecho para visualização.
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Trecho:
Lucía solta uma risadinha curta e Nula, que evita olhar para ela, sorri de leve. Acaba de ser assaltado pela pergunta que o visita repetidamente, menos como problema que como enigma tranqüilo e sem solução, charada ou desafio: quanto duram, fora dos relógios, os acontecimentos? Quanto dura um dia para uma formiga ou, no Exterior, o barulho de uma moeda ao colidir com o chão? Parece brevíssimo e se desmancha para sempre, ou continua vibrando indefinidamente com a mesma persistência inesgotável, comum a tudo o que se passa? Ou quem sabe a totalidade do que exista recomece, com cada partícula de acontecer, por mais ínfima que seja, do nada, e seu ser é composto de perpétuos e novíssimos hiatos infinitesimais cujo número nenhum método de cálculo conhecido ou por conhecer seria capaz de precisar?
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Autor: Juan José Saer
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 42,00 (416 págs.)