Ernst Cassirer [1874 – 1945] foi um dos maiores filósofos do século XX.
Seu Ensaio sobre o homem – traduzido no Brasil primeiramente como “Antropologia filosófica”[i] – apresenta os resultados de uma vida de estudos sobre as realizações culturais da humanidade. É uma síntese original do conhecimento contemporâneo, uma interpretação notável da crise intelectual de nosso tempo e uma brilhante defesa da capacidade da razão do homem.
Diz Cassirer que “no mundo humano encontramos uma característica nova que parece ser a marca distintiva da vida humana. O círculo funcional do homem não é apenas quantitativamente maior; passou também por uma mudança qualitativa. O homem descobriu, por assim dizer, um novo método para adaptar-se ao seu ambiente. Entre o sistema receptor e o efetuador, que são encontrados em todas as espécies animais, observamos no homem um terceiro elo que podemos descrever como o sistema simbólico. Esta nova aquisição transforma o conjunto da vida humana. Comparado com os outros animais, o homem não vive apenas em uma realidade mais ampla; vive, pode-se dizer, em uma nova dimensão da realidade. Existe uma diferença inconfundível entre as reações orgânicas e as respostas humanas. No primeiro caso, uma resposta direta e imediata é dada a um estímulo externo; no segundo, a resposta é diferida. É interrompido e retardado por um lento e complicado processo de pensamento”.
Sua investigação fundamental é: o que é o homem? E, sobre o que entende enquanto questão humana, o filósofo pontua que, depois de um “breve exame dos diversos métodos até agora empregados na resposta à pergunta: Que é o homem? chegamos à nossa questão central. Serão estes métodos suficientes e exaustivos? Ou existirá ainda outro enfoque da filosofia antropológica? Existirá outro caminho aberto além da introspecção psicológica, da observação e da experiência biológica e da investigação histórica? Procurei descobrir um enfoque alternativo dessa natureza em minha Filosofia das formas simbólicas. O método deste trabalho não significa, de maneira alguma, uma inovação radical; não procura suprimir, mas completar pontos de vista anteriores. A filosofia das formas simbólicas parte do pressuposto de que, se existe alguma definição da natureza ou ‘essência’ do homem, só pode ser compreendida com funcional, não como substancial. Não podemos definir o homem por nenhum princípio inerente que constitui sua essência metafísica – nem defini-lo por nenhuma faculdade ou instinto inatos, passíveis de serem verificados pela observação empírica. A característica notável do homem que o distingue, não é sua natureza metafísica ou física – mas seu trabalho. é este trabalho o sistema das atividades humanas, que define e determina o círculo de ‘humanidade’. A linguagem, o mito, a religião, a arte, a ciência, a história são os constituintes, os vários setores desse círculo”.
Segundo Cassirer o ser humano é um animal symbolicum, um ser que constrói sua realidade à medida que cria signos e símbolos. Entre as diferentes formas simbólicas, estão o mito, a religião, a linguagem, a própria ciência. Uma filosofia do homem articula-se através das relações entre funções simbólicas: “um sinal faz parte do mundo físico do ser; um símbolo é parte do mundo humano do significado. Os sinais são operadores e os símbolos são designadores”.
Para o filósofo, a “necessidade de métodos independentes de análise descritiva é geralmente reconhecida. Não podemos querer medir a profundidade de um ramo especial da cultura humana sem a precedência de uma análise descritiva. A visão estrutural da cultura deve preceder à meramente histórica. A própria história se veria perdida na massa infinita de fatos desconexos se não possuísse um plano estrutural geral por meio do qual pudesse classificar, ordenar e organizar esses fatos. Por exemplo, no campo da história da arte um plano semelhante foi desenvolvido por Heinrich Wölfflin: o historiador de arte seria incapaz de caracterizar a arte de diferentes épocas se não estivesse de posse de algumas categorias fundamentais da descrição artística, que encontra estudando e analisando os diferentes modos e possibilidades de expressão artísticas. Tais possibilidades não são ilimitadas; na realidade, podem reduzir-se a um pequeno número. Partindo deste ponto de vista, Wölfflin concretizou sua famosa descrição do clássico e do barroco: os termos ‘clássico’ e ‘barroco’ não forma usados com os nomes de fases históricas definidas. […] Se o linguista e o historiador de arte requerem categorias estruturais fundamentais para sua ‘autopreservação’, tais categorias são ainda mais necessárias a uma descrição filosófica da civilização. A filosofia não pode concentrar-se em analisar as formas individuais da cultura humana. Busca uma visão sintética universal, que inclui todas as formas individuais”.
Cassirer foi um dos mais notáveis representantes da corrente filosófica conhecida como o neokantismo. Sua investigação estende a problemática kantiana às formas simbólicas, enquanto constituintes de da cultura.
Conforme contextualiza sinteticamente a professora Beatriz Helena Furlanetto, no artigo “A arte como forma simbólica”: “A ciência era concebida por Kant como um conhecimento universal, a esfera da objetividade. Para Cassirer, a ciência passa a ser compreendida como um conhecimento simbólico, perdendo seu caráter universal e colocando-se no mesmo patamar de outros conhecimentos simbólicos, de outras formas simbólicas. Dessa forma, enquanto Kant admite apenas a ciência como forma de conhecimento objetivo, Cassirer defende que todo conhecimento e toda relação do homem com o mundo se dá no âmbito das diversas formas simbólicas. Entende-se por forma simbólica toda a energia do espírito em cuja virtude um conteúdo espiritual de significado é vinculado a um signo sensível concreto e lhe é atribuído interiormente. […] Na obra Ensaio sobre o homem, Cassirer busca fundamentar a sua tese do homem como animal symbolicum, produtor de signos e símbolos na sua relação com o mundo: ciência, linguagem, mito, religião, arte e história são modalidades de simbolização com as quais o homem constrói sua realidade. O homem vive em um universo simbólico e as formas simbólicas são construções efetuadas pelos sujeitos. Cada forma simbólica constrói sua própria “realidade” de forma específica, com diferentes perspectivas e valores”.
A antropologia filosófica de Cassirer, com o título Ensaio sobre o homem, aproximou-se mais do original, Essay on Man, com tradução de Tomás Rosa Bueno, publicada pela WMF Martins Fontes.
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Trecho:
A ciência representa o último passo no desenvolvimento espiritual do homem e pode ser considerada como a conquista máxima e mais característica da cultura humana. Trata-se de um produto verdadeiramente tardio e refinado, que não pode desenvolver-se senão em condições especiais. Nem sequer a concepção da ciência em seu sentido especifico, existiu antes da época dos grandes pensadores gregos, antes dos pitagóricos e dos atomistas, antes de Platão e Aristóteles. E esta concepção primeira pareceu esquecer-se e eclipsar-se nos séculos seguintes. Teve que ser redescoberta e restaurada na época do Renascimento. Depois deste redescobrimento o triunfo da ciência pareceu ser completo e indiscutível. Não há nenhum outro poder em nosso mundo moderno que possa ser comparado com o do pensamento cientifico. Considera-se como o sumum e a consumação de todas as nossas atividades humanas, como o ultimo capitulo na história do gênero humano e como o tema mais importante de uma filosofia do homem.
Podemos discordar no que concerne aos resultados da ciência ou a seus princípios primeiros, mas parece fora de duvida sua função geral. Podemos aplicar à ciência a conhecida frase de Arquimedes: dá-me um ponto de apoio e moverei o mundo. Num universo cambiante, o pensamento cientifico nos fixa os pontos quietos, os pólos em repouso, irremovíveis. Na língua grega o termo episteme deriva, etimologicamente, de uma raiz que significa firmeza e estabilidade. O processo cientifico nos conduz a um equilíbrio estável, a uma estabilização e consolidação do mundo de nossas percepções e pensamentos.
Por outro lado, a ciência não se acha só na realização desta missão. Em nossa epistemologia moderna, tanto na escola empírica quanto na racionalista, topamos comumente com a concepção de que os primeiros dados se acham num estado completamente caótico.
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Autor: Ernst Cassirer
Editora: WMF Martins Fontes
Preço: R$ 43,93 (400 págs.)
[i] [Cassirer, Antropologia filosófica, ed. Mestre Jou, 1972, tradução de Vicente Félix de Queirós]