O romance se passa na Europa pós Segunda Guerra, em meio a uma paisagem de escombros, figuras esqueléticas e quase absoluto desamparo social e psicológico. Naquele cenário, uma menina e um homem perambulam por entre as ruínas. A menina é Hanna, tem catorze anos, é portadora de uma doença congênita e está em busca do pai; o homem é Marius, sujeito enigmático que parece se esconder do próprio passado. A menina, desprotegida e com dificuldades de comunicação, carrega consigo uma caixa repleta de fichas escritas que formam uma espécie de curso, com atividades e perguntas, e, a partir delas, dá-se um questionamento sobre o que é o ser humano. Juntas, as duas personagens chegam a um estranho hotel em Berlim, no qual os quartos não têm números, mas carregam os nomes dos campos de concentração que, pouco tempo antes, foram o palco do inferno para milhões de pessoas. Quando Marius pergunta por que fazem aquilo, a dona do hotel responde: “Porque podemos. Somos judeus”.
Trata-se de uma narrativa fantasmagórica e irônica, características típicas do autor português, que neste livro cria um retrato tocante da guerra e de suas vítimas.
De acordo com o crítico português Gonçalo Mira, em artigo publicado no caderno Ípsolon, do jornal Público, os “encontros e as subsequentes conversas inusitadas que Marius e Hanna vão tendo (Hanna sempre como espectadora não-interveniente) são o verdadeiro enredo do livro, já que a busca pelo pai da menina é apenas a desculpa que os faz andar de um ponto para o outro. Uma Menina Está Perdida… é, por isso, um daqueles romances que se podiam quase dividir em contos. Não é o desfecho da história que interessa, mas sim as histórias mais pequenas contidas no livro. Mas é este artifício, este fio narrativo que liga todos os episódios, que o torna uma obra maior”.
Segundo analisou em resenha o comentarista português Bran Morrighan, há “uma metafísica intrínseca a cada história que nos é contada. As conclusões, as ilações, serão sempre subjectivas. Não estamos perante uma obra com princípio/meio/fim, mas antes perante um profundo questionário sobre o que faz mover estas personagens e o porquê. Hanna, ao início, estava limitada aos seus cartões de instruções, mas até estes acabam por servir como símbolo de Hansel e Gretel [em Portugal, é como são conhecidos os personagens do conto de fadas João e Maria] como uma possibilidade de regressar ao ponto de partida seguindo o percurso oposto ao qual foram sendo deixados”.
A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.
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Marius sorriu.
Perguntou.
— Qual é o teu primeiro nome?
— Hanna.
— És rapaz ou rapariga?
— Rapariga. (ela falava atabalhoadamente, mas Marius conseguia perceber.)
— O teu nome completo?
— Não.
— Não dizes?
Ela não respondeu.
Olhou para a cartolina (dir -se -ia pertencente a um ficheiro, mas não tinha nenhuma marca que indicasse ter sido arrancada — alguém lhe dera aquilo ou ela mesma a havia tirado, cuidadosamente, de um ficheiro. Marius reparou num pormenor. No topo da cartolina, a letra mais pequena, quase ilegível, estava escrito: Aprendizagem de Pessoas com Deficiência Mental). Marius continuou:
— Nome dos pais e dos irmãos?
— Não.
— A morada?
— Não.
— Em que escola andas?
— Não. Ela não parava de sorrir. Os seus nãos eram simpáticos — como se fossem sins.
— Que idade tens?
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UMA MENINA ESTÁ PERDIDA NO SEU SÉCULO À PROCURA DO PAI
Autor: Gonçalo M. Tavares
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 39,90 (240 págs.)