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Universal, humano, histórico

6 fevereiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Um homem de compleição grande, porém agora descarnada, com uma barba curta avermelhada que parecia um disfarce e por cima da qual seus olhos claros tinham uma qualidade ao mesmo tempo visionária e alerta, implacável e descansada num rosto cuja carne tinha uma aparência de cerâmica, de ter sido colorido por aquela febre de forno fosse de alma ou ambiente, mais profunda que a do sol apenas embaixo de uma superfície morta impenetrável como se de argila esmaltada”.

xilogravura de Hansen Bahia

Publicado originalmente em 1936, Absalão, Absalão, de William Faulkner, é um dos mais prestigiados romances do século XX. Cosiderado uma obra prima, o texto, ambientado no sul dos Estados Unidos durante e após a Guerra Civil Americana, narra a história da ascensão e da derrocada de Thomas Sutpen. O protagonista é um homem branco que enriquece explorando a escravidão; fundador de uma dinastia, acaba sendo destruído por sua própria descendência.

A família habita o condado de Yoknapatawpha, localizado na cidade imaginária de Jefferson, no sul do Estados Unidos. O microcosmo ali criado articula os embates e desencontros da trajetória de Sutpen como verdadeiro reflexo da própria tragédia do homem contemporâneo.

A força da prosa de Faulkner articula-se às reverberações históricas. No desenrolar da narrativa traduzem-se em humanidade as profundas mudanças atravessadas pela sociedade americana desconstroem costumes, transformam antigas conquistas em ruínas.

De acordo com o crítico Claudio Magris, no ensaio “A cor do trovão”, presente no livro Alfabetos — Ensaios de Lite­ratura [UFPR, 2012], Absalão, Absalão subjuga seus leitores “por tantas coisas, figuras, palavras, clarões, murmúrios de vida e morte. Temos a impressão de não estar atinando, de não compreender, de não conseguir desfazer o emaranhado novelo daquela saga complicada e de acabarmos, também, envolvidos por aqueles fios, como se nos fechassem num casulo e terminássemos sendo sugados pelo lamacento rio da vida”. Trata-se para ele de um “desconcerto inicial, que pouco a pouco se transforma em irresistível envolvimento e êxtase, é a marca das grandes obras, que não concedem nada, que não aplainam a estrada para o leitor, nem lhe facilitam ilusoriamente a compreensão”.

Segundo Ariovaldo José Vidal, professor de Teoria literária da USP, em artigo publicado na Revista USP: “A prosa de William Faulkner talvez seja o exemplo acabado na literatura norte-americana do que Morris Croll chamou de “estilo solto”. O crítico da prosa barroca distingue dois estilos basilares: o primeiro, que chama de “coupé”, é o da sintaxe entrecortada, das frases breves e assindéticas; o segundo, que nos interessa mais de perto, se faz por adição e não por cortes, através de longos torneios frasais, encadeados por conjunções coordenativas, soltas, que atam e desatam as frases, deixando-as caminharem para qualquer lado, e não raro intercaladas de parênteses”. O professor faz uma análise rica e sugere aproximações com a literatura brasileira; de acordo com sua interpretação, por “várias razões, é possível aproximar com proveito as obras de William Faulkner e José Lins do Rego, a começar do fato de ambos serem contemporâneos, tendo escrito as respectivas obras entre os anos de 30 e 60: Fogo Morto (1943), ponto alto da obra de José Lins, foi publicado poucos anos depois de Absalão, Absalão (1936). A preocupação com o painel da decadente sociedade escravocrata – pois ambos situam a obra entre o fim da escravidão e o início do século – é o mais forte ponto em comum dos autores, estudado num recente ensaio brasileiro. […] Tanto Absalão, Absalão, quanto Fogo Morto descrevem o processo histórico que – no Brasil e nos EUA – pôs fim ao regime e à economia escravagistas: lá com a Guerra da Secessão, de 1861 a 1865; aqui com a assinatura da Lei de 1888. Mas a qualidade das relações de poder é muito diferente nos romances, ainda que sejam basicamente os mesmos os componentes das duas cenas históricas; ou então será diferente o que cada romancista apreendeu do processo histórico. Do romance de William Faulkner interessa tomar uma cena, não da Guerra Civil americana, mas da rebelião dos escravos haitianos contra o fazendeiro de descendência francesa, pai de Eulalia Bom”. Para concluir o artigo, Vidal conta que Faulkner, comentando sobre seu método de trabalho, “disse certa vez, entre outras coisas importantes e curiosas, que o escritor não deve intervir na realidade, apenas observá-la: “e, quanto às pessoas, é preciso também observá-las. Mas sem nunca julgá-las. Observar o que elas fazem, sem nenhuma intolerância, buscando apenas aprender por que elas fizeram o que fizeram”.

A tradução para o português foi feita por Celso Mauro Paciornik e Julia Romeu. A editora disponibiliza um trecho para visualização.

 

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“Isso foi tudo que a cidade saberia dele por quase um mês. Aparentemente, havia chegado à cidade vindo do sul – um homem com cerca de vinte e cinco anos, como a cidade ficou sabendo depois, porque na época sua idade não poderia ter sido adivinhada porque ele parecia um homem que estivera doente. Não como um homem que tivesse ficado pacientemente na cama e se recuperado para se mover com uma espécie de reservado e ensaiado espanto num mundo em que ele se acreditasse prestes a submeter, mas como um homem que passara por alguma experiência solitária de fornalha que era mais do que simples febre, como diz um explorador, que não só tinha que enfrentar a dificuldade normal da busca que escolhera, mas fora tragado pelo obstáculo adicional e imprevisto da febre também e a combatera com enorme custo, menos físico do que mental, sozinho e sem ajuda e não peço impulso cego e instintivo de resistir e sobreviver, mas de ganhar e conservar para desfrutar o prêmio material pelo qual aceitara a aposta original. Um homem de compleição grande, porém agora descarnada, com uma barba curta avermelhada que parecia um disfarce e por cima da qual seus olhos claros tinham uma qualidade ao mesmo tempo visionária e alerta, implacável e descansada num rosto cuja carne tinha uma aparência de cerâmica, de ter sido colorido por aquela febre de forno fosse de alma ou ambiente, mais profunda que a do sol apenas embaixo de uma superfície morta impenetrável como se de argila esmaltada. Isso foi o que eles viram, embora tenham passado anos até a cidade saber que isso era tudo o que ele possuía na época – o cavalo forte e esgotado, as roupas do corpo e um pequeno alforje onde mal cabiam uma muda de roupa branca e as navalhas, e as duas pistolas sobre as quais a srta. Coldfield já contara a Quentin, com as coronhas gastas pelo uso como cabos de picareta e que ele usava com a precisão de agulhas de tricotar; mais tarde o avô de Quentin viu Sutpen cavalgar num meio-galope e meter duas balas numa carta de baralho pregada numa árvore. Ele tinha um quarto na Pensão Holston, mas levava a chave consigo e toda manhã alimentava e selava o cavalo e saía cavalgando antes do dia clarear, para onde a cidade também não conseguiu saber, provavelmente pelo fato de que ele deu a demonstração de pistola no terceiro dia depois da sua chegada. Assim, eles tiveram que depender de indagações para descobrir o que pudessem sobre ele, o que necessariamente seria à noite, à mesa na sala de jantar da Pensão Holston ou no salão que ele teria que cruzar para alcançar seu quarto e trancar a porta de novo, o que ele faria tão logo terminasse de comer. O bar também dava para o salão, e esse seria ou poderia ter sido o lugar para abordá-lo e mesmo inquiri-lo, exceto pelo fato de que ele não frequentava o bar. Ele não bebia, assim disse a eles. Não disse que costumava beber e tinha parado, nem que jamais tivesse consumido álcool. Disse simplesmente que não se interessava por bebida; levou anos até o avô de Quentin (ele era jovem, então; anos se passariam até ele se tornar o General Compson) saber que a razão por que Sutpen não bebia era que ele não tinha dinheiro para pagar a sua parte ou retribuir a cortesia; o General Compson foi o primeiro a perceber que nessa época Sutpen carecia não só de dinheiro para gastar com bebida e sociabilidade, mas também de tempo e inclinação: que ele era, nessa época, escravo absoluto de sua secreta e furiosa impaciência, da convicção que tinha adquirido sabe-se lá em que experiência recente – aquela febre mental ou física – de uma necessidade de pressa, de tempo fugindo embaixo dele, que o iria mover nos cinco anos seguintes – tal como o General Compson o computou, aproximadamente até cerca de nove meses antes de seu filho nascer”.

[Trecho divulgado pela revista Cult em 2010, quando a Cosac Naify começou a falar publicamente desta tão esperada edição]

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faulkner

 

ABSALÃO, ABSALÃO

Autor: William Faulkner
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 48,93 (352 págs.)

 

 

 

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