Literatura

O que se pode saber de um homem

9 fevereiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Flaubert representa, para mim, exatamente o contrário da minha própria concepção da literatura: um alienamento total e a procura de um ideal formal que não é, de modo algum, o meu…” – Sartre.

 

– Caricatura de Flaubert, por Eugène Giraud

A última obra escrita por Sartre, O idiota da família, é um verdadeiro monumento. Publicado em três volumes, aos quais se seguiria ao menos mais um, rascunhado, porém inacabado pelo avanço da cegueira e de problemas de saúdes do filósofo, trata-se de um profundo e abrangente estudo sobre a vida e obra de Flaubert, através de um método investigativo que articula existencialismo, psicanálise e crítica literária. É, pois, considerado síntese de todo o pensamento filosófico sartreano.

À época da publicação do primeiro volume, Sartre, indagado sobre a natureza de seu interesse por Flaubert, disse que o escritor representava seu avesso e que era justamente este o motivo de sua admiração. O filósofo reconstrói os fundamentos psicológicos de Flaubert a partir de reflexões sobre seu meio familiar, entre uma mãe fria e um pai autoritário. O título, Sartre explica: “Uma testemunha conta que o menino aprendeu a ler muito tarde e que seus familiares o tinham então por criança retardada”

Sartre analisa as respostas de Flaubert ao mundo, que a família considerava sinais de idiotia, tomando-as como reações emocionais. Tomando o escritor, portanto, como um universal singular, ou seja, analisando-o na relação recíproca de ser totalizado por sua época e de a re-totalizar, reproduzindo-se, nela, como singularidade. Flaubert é um caso concreto do estudo do homem, psicanalítico e existencial, que, por um lado, compreende a singularidade de seus projetos e que, por outro lado, identifica em si os elementos objetivos da sua época. Vocação hermenêutica, cujo sentido é encontrado no projeto original do sujeito, procurando estabelecer o sentido de sua totalização singular.

Flaubert, na infância, demorou a falar e, posteriormente, a escrever. Sartre vê nisso a dificuldade de inserção no mundo adulto e, posteriormente, no escritor adulto, a constante tensão entre fala e silêncio. Super-protegido, mas pouco amado, Flaubert enquanto menino foi afetado por um profundo sentimento de inferioridade, submissão, necessidade de ser amado. Contudo, as frustrações não o afetam, mas o constituem.

Como sintetiza Fabio Caprio Leite de Castro, professor da PUC-RS, em artigo, “Sartre faz uma análise e depois a síntese das relações que o pequeno Gustave estabeleceu com os seus parentes, seu irmão e sua irmã. Essas descrições passam pelos problemas de alfabetização de Flaubert, o mal-amado, e pelas suas “bobeiras”. Depois do exame do período constitutivo, Sartre busca a compreensão da personalização do jovem Flaubert através das transformações da sua relação consigo, com a linguagem e com o imaginário, bem como através das novas relações que ele estabelece com o seu entorno e, sobretudo, com o seu amigo Alfred Le Poittevin. A personalização pode ser considerada como a passagem da passividade constituída a uma recuperação reflexiva pela consciência”. De acordo com Castro, “as “bobeiras”, a perda aparente de consciência e o “grande mal” foram diagnosticados à época como relacionados à epilepsia. Sartre, no entanto, vê nesses eventos a simbolização histérica”.

Flaubert em sua obra retoma incessantemente a infância problemática, a alfabetização truncada, a incomunicabilidade do vivido. Como analisa Sartre: “A revolução flaubertiana vem de que este escritor, desafiando a linguagem desde a infância, começa, ao contrário dos clássicos, por colocar o princípio da não-comunicabilidade do vivido”.

O professor Franklin Leopoldo e Silva, em artigo escrito ao jornal Folha de São Paulo, por ocasião do lançamento do primeiro volume, aponta que O idiota da família foi “concebido para realizar a possibilidade de uma antropologia estrutural e histórica, em que a realidade humana atingiria uma compreensão plena na figura de um indivíduo dialeticamente concebido como universal singular”. Para o professor, o estudo sobre Flaubert “é a tentativa de compreender o processo pelo qual um indivíduo se faz sujeito, por meio da relação dialética entre a liberdade e os fatores que determinam a situação vivida no cruzamento entre uma história pessoal e a história geral da época. É nesse sentido que Sartre afirma, no início do prefácio, que o livro é a continuação de “Questões de Método”: com efeito, o estudo que depois se tornou a introdução de “Crítica da Razão Dialética” tem como objetivo, como seu título indica, propor modos de estabelecimento de posições teóricas a fim de configurar um saber acerca do homem que não esteja preso nem à soberania da consciência, como no estilo clássico, nem à causalidade determinista do marxismo ortodoxo dos anos 1950. Essa dupla exclusão, decorrente de uma abordagem crítico- dialética da subjetividade e da história, permite que se incluam na questão humana as duas perspectivas que antes pareciam antagônicas: a singularidade subjetiva e a universalidade histórica”. Leopoldo e Silva explica como a abordagem de Sartre une psicanálise e existencialismo: “O termo “psicanálise” evoca a compreensão de uma história pessoal. Sartre não aceita todas as noções cunhadas por Freud; sobretudo resiste fortemente à concepção do inconsciente, em razão de sua própria teoria da translucidez da consciência. No entanto, ao considerar relevante a consideração de que o indivíduo é a sua história, valoriza enfaticamente o papel que a infância desempenha no pensamento do fundador da psicanálise. É assim que, sobretudo no primeiro volume de “O Idiota da Família”, Sartre considerará a infância de Flaubert, sua “proto-história”, cenário de elucidação imprescindível para entender como e a partir do que esse homem elaborará sua própria história […] Não se trata apenas de registrar dados biográficos mas de construir a oportunidade de refletir sobre a formação da neurose constitutiva do sujeito; uma estrutura, da qual não está ausente a história, incrustada na singularidade”. O professor conclui seu artigo resgatando uma famosa frase de Sartre: “somos aquilo que fazemos com o que querem fazer de nós. Nessa relação complexa situa-se a extraordinária dificuldade do projeto sartriano: “O que se pode saber de um homem?”. A identidade subjetiva nunca se apresenta como totalidade acabada. É preciso acompanhar o movimento sinuoso da história pessoal, interpretar a heterogeneidade como a totalidade impossível, para chegar a uma visão que transcenda a individualidade e capte a expressão da universalidade no drama singular de uma existência”.

No Brasil, a L&PM publicou o primeiro volume no final de 2013, com tradução de Julia da Rosa Simões e o segundo volume, em 2014, traduzido por Ivone C. Benedetti. O terceiro volume, traduzido também por Benedetti, consta no site da editora como publicado em maio de 2014, porém encontra-se indisponível para vendas.

A L&PM é responsável pela publicação também do Esboço para uma teoria das emoções e A imaginação, estudos do Sartre mais jovem, envolvido com a fenomenologia.

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Trecho do volume 1:

Um problema

Ler

Quando o pequeno Gustave Flaubert, perdido, ainda “bestial”, emerge da primeira infância, as técnicas estão à sua espera. E os papéis. O adestramento começa: não sem sucesso, ao que parece; ninguém nos diz, por exemplo, que tenha tido problemas para caminhar. Pelo contrário, sabemos que o futuro escritor tropeçou foi quando se tratou da prova primordial, o aprendizado das palavras. Tentaremos ver, mais adiante, se teve, desde o princípio, dificuldades para falar. O certo é que se saiu mal em outra prova linguística, iniciação e rito de passagem, a alfabetização: uma testemunha conta que o menino aprendeu a ler muito tarde e que seus familiares o tinham então por criança retardada. Caroline Commanville, de sua parte, faz o seguinte relato:

“Minha avó havia ensinado o filho mais velho a ler. Ela quis fazer o mesmo com o segundo e pôs mãos à obra. A pequena Caroline, ao lado de Gustave, aprendeu logo, mas ele não conseguia, e depois de esforçar-se bastante para compreender aqueles signos que nada lhe diziam, chorava muito. No entanto, estava ávido por aprender, e seu cérebro trabalhava… (um pouco mais tarde, o pai Mignot lia para ele) nos incidentes causados pela dificuldade de aprender a ler, o argumento final de Gustave, irrefutável segundo ele, era: ‘Para que aprender, se Papai Mignot lê?’. mas a idade de ir para a escola se aproximava, era preciso aprender a qualquer preço… Gustave dedicou-se resolutamente e, em alguns meses, alcançou as crianças de sua idade.”

Veremos que essa relação difícil com as palavras determinou sua carreira. Alguns dirão que devemos acreditar na sobrinha de Flaubert. E por que não? Ela vivia na intimidade do tio e da avó: é desta que tira suas informações. Se lhe dermos total crédito, no entanto, seremos desviados pelo falso bom humor do relato. Caroline corta, expurga, suaviza; apesar de, por um lado, o incidente relatado não lhe parecer comprometedor, ela o retoca, abusando da severidade à custa da verdade. Basta uma leitura para encontrar a chave dessas deformações dúplices e opostas: o objetivo é agradar sem perder o tom de boas maneiras.

Voltemos à passagem que acabo de citar: não teremos dificuldade alguma em vislumbrar a verdade da ingrata infância de Gustave. Dizem-nos que o menino chorava muito, que estava ávido por aprender e que sua impotência o desolava. Depois, um pouco mais adiante, mostram-nos um preguiçoso fanfarrão, teimoso em sua recusa de aprender: para quê?, o pai Mignot lê para mim. será o mesmo Gustave? Sim, a primeira atitude é provocada por uma constatação feita por ele mesmo: adversidade das coisas, incapacidade de sua pessoa. O Outro está presente, sem dúvida: é a testemunha, é o meio opressor, é a exigência. mas este não provoca o pesar do pequeno, relação espontaneamente estabelecida entre os imperativos inanimados do alfabeto e suas próprias possibilidades. “Eu devo mas não posso.” A segunda atitude supõe uma relação agônica entre o filho e seus pais. Caroline Commanville conta-nos, como que de passagem, que havia incidentes; é o suficiente. Esses incidentes não começaram logo de início. Houve o tempo da paciência, depois o da aflição, por fim o da censura: no início, culpam a natureza, mais tarde acusam o pequeno de má vontade. Ele responde com bazófia que não sente a necessidade de aprender a ler; mas já foi vencido, já foi ludibriado: quer explicar sua recusa em instruir-se, portanto admite-a; os pais não pedem mais que isso, e todas as suas impaciências são justificadas. A humildade desarmada, o orgulhoso despeito que faz a vítima retomar por conta própria o malicioso querer do qual é falsamente acusada, essas duas reações estão separadas por vários anos. Houve, na casa dos Flaubert, certo mal-estar quando Gustave, confrontado com as primeiras obrigações humanas, revelou-se incapaz de cumpri-las. Esse mal-estar, amplificado de modo gradual, persistiu por muito tempo, aguçou-se. uma violência foi cometida contra o menino. Essa violência, tão ligeiramente evocada mas tão legível, é suficiente para macular o bondoso relato. Uma estranha confusão da sra. Commanville acentua nosso desconforto: ela insinua que Gustave e Caroline Flaubert aprendera a ler juntos. Ora, Gustave era quatro anos mais velho que a irmã. Supondo que a sra. Flaubert tenha começado a ensiná-lo por volta dos cinco anos, a filha mais nova, com doze ou treze meses, assistiria às lições do berço. Os três filhos de Achille-Cléophas, cada um por sua vez, tiveram aulas particulares com a sra. Flaubert, o segundo nove anos depois que o mais velho aprendeu a ler, a terceira quatro anos depois que o segundo foi iniciado. No entanto, a sra. Commanville, sem intimidar-se com esses grandes intervalos, convoca no mesmo parágrafo os dois tios e a mãe. Por que, visto que não estudaram juntos? Leia-se bem: a sra. Flaubert fez-se professora do brilhante Achille; com Gustave, ela retoma a experiência. Porque seus êxitos iniciais a haviam convencido de seus dons pedagógicos: Achille deve ter sido uma criança prodígio. E Caroline, a última a vir, mãe da narradora, aprende brincando. Gustave está encurralado entre duas maravilhas: inferior tanto a esta quanto àquele, ele faz feio. Como se a sra. Commanville tivesse se lançado a essa comparação – que não se impunha – para lembrar ao público que as deficiências do futuro escritor eram largamente compensadas pela excelência dos dois outros filhos. O tio era maior de idade quando a sobrinha nasceu; quando Madame Bovary foi publicada, ela tinha onze anos; pouco importa, os primeiros anos de Gustave parecem preocupantes, mesmo para ela que só viu os seguintes; houve aquele retardo, depois “a crise de nervos” da qual ela com certeza cedo ouviu falar, não era preciso mais nada: ela tirará proveito dessa glória mas nunca se deslumbrará com ela. A sra. Commanville, nascida Hamard, é uma Flaubert por parte de mãe; até mesmo no elogio fúnebre do tio ela procurará lembrar seu pertencimento à família científica mais afamada da Normandia. Para salvar a honra Flaubert, ela coloca ao lado de um gênio que confina com a idiotia dois bons sujeitos, duas grandes inteligências, verdadeira progênie de sábios. Se nem mesmo essa senhora, meio século depois dos acontecimentos, consegue impedir-se de comparar as três crianças, não é difícil imaginar o que Gustave deve ter ouvido, entre 1827 e 1830. Mas teremos ocasião de retomar mais detidamente essas comparações. Quisemos mostrar que Gustave, por sua carência, esteve no centro de uma tensão familiar que só cessaria de crescer quando ele alcançasse as “crianças de sua idade”.

Será verdade, no entanto, que o pequeno não aprendeu a ler antes dos nove anos? Se acreditarmos nisso, como aceitar que Gustave sabia escrever há tão pouco tempo quando enviou a Ernest Chevalier, em 31 de dezembro de 1830, portanto aos nove anos, a espantosa carta da qual teremos muitas ocasiões de falar? Ao relê-la, ela impressiona por sua firmeza: frases concisas e densas, verdadeiras; a ortografia é um pouco fantasiosa: não mais do que deve. Sem dúvida alguma, o autor tem domínio de seus gestos gráficos. Ele propõe ao amigo Ernest, além disso, “enviar-lhe suas comédias”. A passagem não é muito clara: trata-se de peças que já escreveu ou de peças que quer escrever quando Ernest “escrever seus sonhos”? Em todo caso, a palavra escrever já tem para ele esse duplo sentido que cria toda uma ambiguidade: designa ao mesmo tempo o simples ato de desenhar palavras em um papel e a ação singular de compor “escritos”. Pensávamos encontrar um antigo idiota, recém saído das brumas: esbarramos em um homem de letras. Impossível. É verdade que uma mudança de ambiente, a inteligência de uma educadora, os conselhos de um médico, tudo pode ajudar as crianças atrasadas; basta-lhes uma chance. E para muitos retardatários o acesso ao mundo da leitura se apresenta como uma verdadeira conversão religiosa, por muito tempo e de modo imperceptível preparada, de repente concretizada. Mas esses progressos repentinos compensariam os atrasos de um ano. De dois, no máximo, não mais que isso. Gustave, a crer em sua sobrinha, tinha quatro ou cinco a recuperar.

Não: analfabeto aos nove anos, o menino teria sido grave e demasiadamente afetado para que seu sprint final fosse sequer concebível. Gustave aprendeu a ler em 1828 ou 1829, ou seja, entre os sete e os oito anos. Antes disso, seu atraso não teria preocupado tanto; depois, ele nunca teria conseguido recuperá-lo.

O que continua sendo verdade é que os Flaubert se preocuparam. Por muito tempo Gustave não conseguiu apreender as ligações elementares que fazem de duas letras uma sílaba, de várias sílabas uma palavra. Essas dificuldades levavam a outras: como contar sem saber ler? Como recordar os primeiros elementos de história e geografia se o ensino mantém-se oral? Hoje em dia não nos preocupamos com isso: os métodos são mais seguros e, sobretudo, aceitamos o aluno como ele é. Na época, havia uma ordem a ser seguida, e a criança precisava submeter-se a ela. Portanto, Gustave estava atrasado em todo o trajeto.

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