Literatura

Em verso e prosa

16 junho, 2014 | Por Isabela Gaglianone

O livro Dois sonhos reúne duas ficções de Fiódor Dostoiévski, que se articulam não tanto pelo gênero, mas pela percepção extremamente aguçada que tende a descobrir, por meio da ironia e do confronto entre diferentes pontos de vista, os ângulos mais incomuns da realidade. O volume traz O sonho do titio e Sonhos de Petersburgo em verso e prosa, traduzidos diretamente do russo por Paulo Bezerra, também responsável pelo posfácio e pelas notas.

O sonho do titio foi publicado em 1859, ano em que o escritor retornou a São Petersburgo após um longo período de exílio na Sibéria. A narrativa toma a forma da comédia de costumes e da crônica de província para promover uma crítica generalizada à sociedade russa, sobretudo em relação à sua aristocracia, alheia às importantes transformações históricas em vias de realizar-se na Rússia.

Sonhos de Petersburgo em verso e prosa, folhetim publicado em 1861, apaga deliberadamente as fronteiras entre a prosa e a poesia para construir uma visão a um só tempo crítica, cômica e fantástica da cidade construída por Pedro, o Grande. Dostoiévski utiliza um registro que oscila entre o devaneio, a epifania e a mais lúcida observação.

Em comum, ambos sonhos traduzem o impulso do humor anárquico instaurado entre os escritores russos por Nikolai Gógol (1809-1852). Humor que subverte as expectativas e, com certo absurdismo e nonsense, renova o olhar sobre o mundo. Um humor que chega a ser escrachado, torna-se ferramenta nas mãos do escritor. Crítico implacável, Dostoiévski é notório por sua precisa capacidade de observação; nas duas narrativas aqui reunidas, não apenas a linguagem e o estilo estético dos seus grandes romances – escritos nas duas décadas seguintes –, já são presentes, mas o âmago da inquietação do escritor diante das repercussões, no ser humano, das grandes mudanças econômicas e sociais em curso na Rússia do século XIX.

Como analisa Manuel da Costa Pinto, em artigo escrito ao jornal Folha de São Paulo, a obra “madura de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), que começa a partir da novela Memórias do Subsolo (1864), é tão poderosa que seus livros anteriores parecem prelúdios aos “anos milagrosos” – expressão do biógrafo Joseph Frank para o período em que o romancista russo escreve Crime e Castigo (1866), entre outros. Mas Dostoiévski é como Bach: além de alcançar extremos de beatitude e compaixão, divertimento e meditação, até mesmo suas obras “menores” guardam prodígios de invenção”. Sobre O sonho do titio, Costa Pinto aponta que “um dos traços marcantes do livro é a tensão entre retórica e intenção que eclode nas “cenas de conclave”, expressão de Leonid Grossman para as passagens dostoievskianas em que uma quantidade enorme de personagens se reúne num mesmo espaço, desencadeando tumultos de humilhação”. O crítico identifica uma “cômica tipologia”, por trás da qual há “uma percepção da dinâmica do ressentimento que vai muito além da hipocrisia social ou das mazelas econômicas. Em Dostoiévski, a cobiça guarda um desejo de reconhecimento espiritual, de salvação da vala comum, que aproxima o reles do sublime. Por isso, os esquetes urbanos de “Sonhos de Petersburgo…” são, em larga medida, paródia e sátira das afetações dos escritores de seu tempo, incapazes de perceber essa dinâmica, que aqui aparece de forma fantasmagórica. Isso se dá no contraste entre os sonhos do protagonista e a mesquinharia da vida objetiva, mas na obra madura de Dostoiévski vai atingir sua síntese numa espécie de realismo metafísico”.

 

DOIS SONHOS

Autor: Fiódor Dostoiévski
Editora: 34
Preço: R$ 30,80 (240 págs.)

 

 

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