Fernanda Arêas Peixoto, em A viagem como vocação – Itinerários, Parcerias e Formas de Conhecimento, propõe um tema que aproxima diferentes autores – Leiris, Gilberto Freyre, Roger Bastide, Oliveira Lima e Pierre Verger: as viagens, realizadas entre as décadas de 1930 e 1960 pelo Brasil, pela América Hispânica e pela África.
A análise é guiada pela revisão dos textos dos autores à luz das viagens que realizaram em contextos muito precisos. Mais do que teorizar sobre as viagens, o livro mostra o grande interesse despertado pelas produções que as viagens geram, entre correspondências, diários, fotografias etc, que são valiosos instrumentos para a recuperação de processos de confecção de conhecimento. Fernanda Peixoto mostra um verdadeiro “ateliê” do criador, que passa a ser entrevisto através das análises, um espaço de experimentações, que tende a ser excluído quando da apresentação pública das obras.
Para a autora, a viagem é forma de acesso à produção das ideias e do conhecimento, ela própria aparece como uma forma de estar – e ser – no mundo, definindo um espaço próprio, provisório, como o são os percursos e as ideias.
O livro foi lançado pela Edusp no segundo semestre do ano passado. Dividido em sete capítulos, perpassa ensaios, artigos acadêmicos, textos jornalísticos, relatos de viagem e prosa de ficção, correspondências, diários, escritos de ocasião, anotações, desenhos e fotografias, a partir dos quais a autora investiga processos de confecção do conhecimento e os bastidores do trabalho intelectual. Profissão e vocação; formação e transformação; geografias, trânsitos e redefinições de pontos de vista: circulação de saberes e parcerias; viagem e memória; a condição estrangeira (suas potencialidades e limites), todos estes são temas e problemas que essas experiências de viagem trazem à tona, cada qual ao seu modo.
As viagens descritas são dos mais variados tipos: viagens profissionais, de estudo, pesquisa e formação; viagens de passeio e turismo; viagens de descoberta e reconhecimento; viagens exteriores (deslocamentos no espaço) e interiores (que transformam os viajantes); viagens livrescas e expedições científicas.
De acordo com Guilherme Simões Gomes Júnior, professor de antropologia da PUC – SP, na resenha intitulada “Etnologia francesa no Brasil e na África”, publicada pela Revista Fapesp, “há um desenho explícito na disposição dos capítulos de A viagem como vocação”; o livro, apresenta o crítico, “apresenta seis estudos: dois que tratam exclusivamente de Roger Bastide, dois de Gilberto Freyre, um que mescla roteiros de Pierre Verger e Bastide e, por fim, um dedicado a Michel Leiris. Nesse quadro, o último parece destoar. De um lado, porque trata de uma viagem por acontecer, isto é, de um artigo – “L’oeil de l’ethnographe” – que Leiris escreve na França antes de partir para a Missão Dakar-Djibouti; de outro, porque o Brasil está ausente, enquanto nos cinco estudos que o precedem é o território visado e percorrido ou o lugar de onde se parte para, em outros quadrantes, ser reencontrado. Mas há um desenho oculto no qual o ensaio sobre Leiris passa a fazer sentido (o leitor poderia começar por ele). Porque na linha do tempo trata da experiência mais recuada e diz respeito ao momento decisivo (1930) no qual a etnologia francesa começa a sair de seus gabinetes e passa a ter por base etnografias de pesquisadores também franceses. Os outros ensaios tratam de viagens posteriores”. Segundo Gomes Júnior: “Nesse segundo desenho, no qual a escola francesa de sociologia e etnologia é uma espécie de sujeito oculto, é Gilberto Freyre quem destoa. Há pouco espaço para tratar dele, mas cabe uma palavra. Enquanto as viagens de Leiris, Bastide e Verger são carregadas de reflexividade e desejo de descoberta, a viagem à África de Freyre não passa de um périplo de autoafirmação, suas fotos entre monumentos e nativos estão carregadas de uma perspectiva imperial. Freyre, no auge de sua consagração, confirma o que já sabia”.
Segundo o professor: “Com o artigo “Lévi-Strauss no Brasil: a forma- ção do etnólogo” (1998) e o livro Diálogos brasileiros (2000), A viagem como vocação (2015) forma um conjunto incontornável de excelentes estudos sobre a escola francesa no Brasil e na África”.
No artigo “A cidade e seus duplos: os guias de Gilberto Freyre”, publicado na Revista Tempo Social em 2005, a autora, Fernanda Peixoto, faz uma interpretação dos guias de cidades escritos e publicados por Gilberto Freyre nos anos de 1930: o Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife [1934] e Olinda – segundo guia prático, histórico e sentimental de cidade brasileira [1939]. Diz Peixoto: “A leitura detida dessas obras, pouco analisadas, permite discutir uma série de questões, já que Freyre fala da(s) cidade(s), de si mesmo e de uma cena de época. É sob essa orientação – a condição de leitora se confunde com a de turista – que procuro seguir seus traçados urbanos, atenta às imagens projetadas sobre a cidade e sobretudo às pistas lançadas sobre sua própria condição de intérprete da cena urbana e da vida social brasileira. O itinerário desenhado por Freyre funciona também como bússola para localizar sua posição como analista da modernização e da modernidade, a partir da consideração da cena regional. Os textos apresentam, numa espécie de drágea concentrada, temas e problemas que mobilizaram o autor durante toda a vida”.
Em outro artigo, apresentado no Encontro Anual da Anpocs, “Diálogo interessantíssimo: Roger Bastide e o modernismo”, a autora pontua que as “relações que se estabeleceram entre Roger Bastide e o grupo modernista em São Paulo não constituem novidade para os estudiosos que se debruçaram sobre estes autores, nem para aqueles que se dedicaram à compreensão do período de modo mais geral”. Ela mostra que “ os primeiros passos de Bastide no Brasil são dados segundo a orientação de um roteiro previamente traçado pelo grupo paulista, e por Mário de Andrade em particular. Bastide refaz um percurso de coloração modernista – temas, viagens, leituras – e, ao fazê-lo, descobre novos atalhos. “Turista aprendiz” que durante suas andanças vai introduzindo alterações na rota original”. Segundo Peixoto, o diálogo entre Bastide e o grupo modernista foi o veio através do qual, diz ela, “Bastide define o seu lugar como intérprete da sociedade e da cultura brasileiras. […] é no debate com os modernistas que o sociólogo problematiza o seu olhar de estrangeiro – logo, a sua identidade – na busca da “alma brasileira”, estabelecendo um patamar de observação”.
Fernanda Arêas Peixoto é professora do Departamento de Antropologia da FFLCH-USP, onde realiza pesquisas em torno do pensamento social brasileiro, da história da antropologia e da história intelectual.
A VIAGEM COMO VOCAÇÃO – ITINERÁRIOS, PARCERIAS E FORMAS DE CONHECIMENTO
Autor: Fernanda Arêas Peixoto
Editora: EDUSP
Preço: R$ 31,50 (288 págs.)
_____________
Ninguém sabe melhor que tu, sábio Kublai, que nunca se deve confundir
a cidade com o discurso que a descreve. No entanto, há uma relação entre ambos.
ITALO CALVINO, As cidades invisíveis.
[passagem utilizada como epígrafe pela autora no supracitado artigo “A cidade e seus duplos: os guias de Gilberto Freyre”]