A Editora Unesp acaba de trazer de volta às livrarias brasileiras a notória Viagem à Itália, de Goethe, com nova tradução, realizada por Wilma Patricia Marzari Dinardo Maas.
A Itália, para Goethe, simbolizava o sul quente e apaixonado, lugar onde o passado clássico ainda se mantinha vivo em espaços, símbolos e hábitos, para os quais procurou significado, redescobrindo-se nas interpretações que marcaram o percurso. A viagem deu-se entre setembro de 1786 e abril de 1788 e, realizada em segredo, quase clandestina, inscrevia-se no imperativo cultural, comum à época, de conhecer o solo de Horácio, Petrarca e Leonardo. A infinidade de assuntos dos quais se ocupou ao longo dessa permanência, porém, extravasa a arte e reflete os múltiplos interesses de Goethe – a tal ponto que João Barrento, responsável pela mais recente tradução do texto publicada em Portugal, cita Emil Staiger para sublinhar a “metamorfose que quase põe em perigo a unidade da pessoa do autor na nossa imaginação”. As idiossincrasias, anseios, e obsessões do autor, que no início da viagem contava com 37 anos, emergem sob o texto, desestabilizando a dicção clássica encontrada por aqueles que desejam ver na obra o ponto de passagem, o momento em que o artista amadurece por completo seu classicismo. O texto só foi publicado por Goethe muitos anos após a viagem; o Goethe “clássico” proverá o texto da temporada italiana de uma dicção variada e ao mesmo tempo autoral, unindo observações colhidas no calor da hora, ao lado de longos trechos extraídos de obras de outros viajantes que o precederam, além de reproduzir sua correspondência e alguns textos de terceiros, como do pintor Tischbein e do escritor Karl Philipp Moritz, ambos companheiros de jornada.
Nesse sentido, Mirella Guidotti, doutora em Estudos Literários pela Unesp, no artigo “A construção do olhar: a Viagem à Itália, de Goethe”, ressalta a viagem como o “renascimento” goetheano – seguindo o que o próprio autor afirma, no relato de sua viagem: “O renascimento que me transforma de dentro para fora segue seu curso. Por certo, eu acreditava que fosse aprender de verdade aqui; mas não pensei que fosse ter de voltar à escola primária, que precisaria desaprender, ou verdadeiramente reaprender tanto”. Para Guidotti, trata-se de um renascimento por ser o “processo que leva à constituição da estética do poeta […] pois, não obstante tenha registrado a experiência durante toda a viagem, Goethe se debruça sobre seus apontamentos somente décadas mais tarde, em sua velhice, incorporando, como é necessário supor devido ao longo período que separa a experiência da viagem e a elaboração do relato, transformações aos registros, fazendo surgir assim uma estetização da própria existência. A produção posterior desta Viagem indica uma preocupação não satisfeita com o mero relato como registro da experiência, mas sim o desejo de dar ao mundo uma obra acabada, capaz de relatar a trajetória de transformação do narrador”. Segundo Guidotti, a obra constitui “um texto que combina as dicções da escrita de si e da narrativa de viagem, expondo o processo de formação do narrador e o nascimento de uma nova maneira de contemplar a obra de arte, que se propõe, por um lado, comunicar as impressões do viajante, e, por outro, constituir o próprio pensamento estético goetheano, mescla, por sinal, verificável em outros momentos da produção do autor”.
Trata-se da formação do olhar; como Goethe disse à Eckermann “[…] a objetividade de minha poesia […] devo à grande atenção e exercício do olhar”.
Também Pedro Fernandes Galé, pesquisador da obra de Goethe no Departamento de Filosofia da USP, ressalta a viagem como um renascimento goetheano; no artigo “Viagem à Itália: a formação no renascimento de Goethe”, ele pontua: “O posto único de Viagem à Itália no universo dos relatos autobiográficos de grandes autores se deve em grande parte às motivações de sua edição e publicação. Gerado em um momento em que a emergência da subjetividade encontrava amparo nas manifestações artísticas e literárias, o texto de Viagem à Itália não é simples diário ou relato de viagem, mas uma espécie de clamor em relação à objetividade e a um modo de operar com as existências que escape à exclusividade da interioridade”. Conforme cita Galé, mais do que se mostrar como personagem, Goethe, segundo João Barrento, “fala de si, qual fenômeno natural actuando no plano da segunda natureza da escrita”. De modo que, pontua Galé, “Goethe se constrói de tal modo que ele mesmo possa ser abordado tal qual um outro objeto. Bakhtin [Estética da criação verbal. Martins Fontes, 2003] coloca esse modo de agir dos textos autobiográficos de Goethe em termos de uma ‘biografia criadora’. Esse estilo, ou ainda modus operandi de construir a si mesmo ainda que narre aquilo que aconteceu, é construído na tecelagem do tempo e permite uma pintura de um eu que se coloca em situações e que reage a elas de maneira formadora”. Para o pesquisador, neste sentido, “não há sequer uma divisão clara entre o que é a obra e o que é a natureza. Assim como na natureza as existências seguem seu propósito, as obras devem ser entendidas no contexto de seu propósito. […] A vida dos objetos de arte […], é algo que Goethe parece exigir. A exigência, em última análise, é de que a arte seja uma segunda natureza. E ainda que a arte, em consonância com a natureza, traga o seu desígnio, a sua ideia formadora no mundo, em sua origem, é da própria coerência de sua constituição que a vida poderá ser garantida, ou obtida. Assim como em um ser da natureza, o objeto artístico tem de trazer em sua manifestação exterior o seu intento e sua movimentação interior, seu desígnio e seu propósito”. Segundo Galé, para Goethe, “à maneira dos seres vivos, as obras de arte carregam em si uma existência plena, quando bem sucedidas”.
Justamente, foi na viagem à Itália que Goethe concebeu alguns de seus conceitos fundamentais a respeito da metamorfose das plantas, a partir da observação da natureza. Em uma passagem do relato, o poeta viajante diz: “No que diz respeito às plantas, sinto muito claramente a minha situação de aprendiz. […] Por certo, trago comigo meu Lineu e tenho sua terminologia bem fixada em minha mente, mas onde encontrarei tempo e tranquilidade para a análise, que, aliás, nunca será meu forte? Por isso aguço o meu olhar para as características mais gerais e, no lago de Walchen, ao divisar a primeira genciana, chamou-me atenção o fato de ter encontrado somente plantas novas junto d’água, até o momento”.
Em busca de a priori morfológicos, a concepção goetheana da metamorfose compreende cada forma como uma formação: uma compreensão plástica da natureza, na qual a forma orgânica do mundo circunscreve a cadeia que vai das leis gerais às leis particulares. O pensamento morfológico goetheano – decisivo, por exemplo, para a compreensão da linguagem e do mito em Schelling, Heine e Lévi-Strauss, para citar só algumas referências de sua enorme influência –, desenvolvido a partir da observação e interpretação dos movimentos de contração e expansão realizados pelas plantas, cuja exuberância, na Itália, o impressionam e estimulam, como diz seu próprio autor, “reuniu fósseis mais antigos e mais recentes e, durante minhas viagens, olhei atentamente aquelas criaturas cuja formação poderia ser-me instrutiva em sua totalidade e seus aspectos particulares”. Em seus apontamentos ao livro A metamorfose das plantas, publicado em 1790, Goethe afirma: “Se eu saboreei os mais belos momentos de minha vida na mesma época em que investigava a metamorfose das plantas, quando se tornou clara para mim a sucessão das suas fases; se esta representação enriqueceu espiritualmente a minha estada em Nápoles e na Sicília, se cada vez mais aderia a este modo de considerar o reino das plantas e me exercitava incansavelmente por montes e vales, a verdade é que estes esforços para mim tão deleitosos adquiriram um valor incalculável por me terem proporcionado a relação mais preciosa que a fortuna reservou já em idade avançada. Devo estes fenômenos atrativos o ter-me ligado intimamente com Schiller, foram eles que dissiparam os mal-entendidos que durante muito tempo me tinham mantido afastado dele”.
Delineia-se a cosmovisão goetheana, já concebida na Alemanha, mas de fato experienciada na Itália, sobretudo a partir da noção de uma “planta arquetípica”, da qual se intuiria, morfologicamente, toda a variedade das plantas. No jardim botânico da Universidade de Pádua, em 27 de setembro de 1786, Goethe nota: “Aqui, diante dessa multiplicidade que me é nova, torna-se cada vez mais viva a idéia de que talvez seja possível fazer remontar todos os tipos de plantas a uma única. Somente assim seria possível determinar verdadeiramente os gêneros e as espécies, o que, no meu entender, até hoje se faz de maneira bastante arbitrária. Foi nesse ponto que emperrei em minha filosofia botânica, e ainda não vejo como desenredar-me. A questão me parece tão profunda quanto ampla”. Meses depois, em Nápoles, Goethe aponta que a “planta primordial será a criatura mais estranha do mundo, pela qual a própria natureza me invejará. Munido desse modelo e da chave para ele, poder-se-á então inventar uma infinidade de plantas, as quais haverão de ser coerentes — isto é, plantas que, ainda que não existam de fato, poderiam existir, em vez de constituírem-se das luzes e sobras da pintura ou da poesia: plantas dotadas de uma verdade e necessidade intrínsecas. A mesma lei deixar-se-á aplicar, então a tudo quanto vive”. Ideia fecunda no sentido da busca goetheana de um fenômeno “primitivo”, o Urphänomen que manifesta a unidade profunda da vida universal. Não se trata da busca de um tipo, como pontua, no prefácio à tradução portuguesa de A metamorfose das plantas, Maria Filomena Molder, mas de um modo de intuir a forma a partir da qual reconhece-se a variabilidade enquanto formadora de uma unidade, graças ao reconhecimento dos elos entre as várias configurações: “o segredo (o um a que todas as diversas ações naturais se podem reconduzir) expõe-se revelador aos nossos olhos justamente nas passagens, nas variações em que se transita de uma ação para outra, de um momento para outro, em que os vestígios de sua decifração estão visíveis”.
A peculiar formação do olhar de Goethe fundamenta-se na relação que ele estabelece entre a arte e a natureza: “Não me canso de dizer o quanto me ajuda na compreensão do trabalho de artistas e artesãos o conhecimento que penosamente adquiri das coisas da natureza, aquelas que o homem necessita como matéria-prima e as quais emprega em seu próprio proveito; do mesmo modo, também o conhecimento das montanhas, e das rochas que delas extraímos, representa para mim uma grande vantagem na arte”. A natureza é seu modelo para a compreensão da arte, e vice-versa, ambas confluem-se. Segundo o autor, conforme apontou no texto Morphologie [in: J. W. Goethe-Werke], citado e traduzido por Izabela Maria Furtado Kestler, professora do Departamento de Letras Anglo-Germânicas da UFRJ, no artigo “Johann Wolfgang von Goethe: arte e natureza, poesia e ciência”, em todas as épocas “se manifestou no homem de ciência um impulso para reconhecer as formações vivas enquanto tais, de apreender as suas partes exteriores tangíveis e visíveis, para as aceitar como indícios e, assim, dominar de certo modo o todo na intuição. Não é preciso expor muito minuciosamente quanto este desejo científico está ligado ao impulso artístico e ao impulso de imitação. Encontramos, por conseguinte, no curso da arte, do saber e da ciência, várias tentativas para fundar e desenvolver uma doutrina, a que gostaríamos de chamar Morfologia […] O alemão tem para o conjunto da existência de um ser real a palavra ‘forma’ [Gestalt]. Com este termo ele abstrai do que está em movimento, admite que uma coisa consistente nos seus elementos seja identificada, fechada e fixada no seu caráter. Mas, se considerarmos todas as formas, em particular as orgânicas, descobrimos que não existe nenhuma coisa subsistente, nenhuma coisa parada, nenhuma coisa acabada, antes que tudo oscila num movimento incessante. A nossa língua costuma servir-se, e com razão, da palavra ‘formação’ [Bildung] para designar tanto o que é produzido como o que está em vias de o ser. Portanto, se quisermos introduzir uma Morfologia, não devemos falar de forma; se, pelo contrário, usarmos a palavra, então temos de tomá-la em qualquer dos casos apenas como idéia […] O que está formado, transforma-se de novo imediatamente e nós temos, se quisermos de algum modo chegar à intuição viva da Natureza, de nos mantermos tão móveis e plásticos como o exemplo que ela nos propõe”. Kestler analisa o que define como o paradigma científico goetheano, ou seja, “moldado pela visão da totalidade da natureza e de sua relação com o homem, baseia-se na idéia de uma correlação entre homem e natureza de uma perspectiva panteísta, ou seja, cada ser vivo possui uma essência divina. A obra científica de Goethe é uma cosmogonia poético-científica, na qual homem e natureza, sujeito e objeto, espírito e matéria não estão separados. Aliás, sua obra poética também não pode ser compreendida em sua totalidade sem que se apreenda sua relação íntima com a obra científica”.
Segundo Arley Andriolo, do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP, no artigo “Metamorfoses do olhar na viagem de Goethe à Itália”: “A visão da paisagem suscita o senso poético, asseverou Goethe. A experiência descrita na narrativa de sua viagem coloca em relação quatro elementos constituintes da experiência da viagem: o espaço, o outro, o eu, o tempo. Se por um lado, o campo perceptivo é preenchido pelos usos sociais, econômicos e políticos dos objetos, por outro, está aberto à experiência que se poderia então designar estética. Se, ver não é olhar e olhar é viajar, o olhar viajante prolonga-se no campo perceptivo como experiência estética porque realiza o objeto estético em outro nível de significação. A apresentação do fenômeno arquetípico à consciência inscreve-se nesse processo com o recurso à prática artística. Goethe metamorfoseia o olhar; não subordina a paisagem, mas apreende o espaço, o tempo, o eu e o outro na paisagem”.
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.Trechos.
No que se refere, porém, àquilo que se chama o solo clássico, a história é outra. Se, nesse terreno, não procedemos de forma fantasiosa, mas, em vez disso, apreendemos a região em sua realidade, conforme ela se apresenta, vemos que ela segue sendo o mesmo palco decisivo no qual se desenrolaram os grandes feitos do passado, de modo que até agora, tenho sempre me valido da contemplação da geologia e da paisagem no sentido de reprimir a fantasia e os sentimentos, com o intuito de adquirir uma visão límpida e clara dos lugares. Contudo, a isso vem se juntar, de forma maravilhosa e vívida, a história, sem que compreendamos como isso ocorre, e eu sinto já um grande desejo de ler Tácito em Roma.
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Muitos desses importantes bustos transportam-me para os magníficos tempos antigos. Infelizmente, porém, percebo o quanto meus conhecimentos são deficientes nesse campo; progredirei, por certo, pois ao menos sei o caminho para tanto. Palladio abriu-o para mim, assim como abriu-me também o caminho para toda a arte e toda a vida.
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Autor: Johann Wolfgang von Goethe
Editora: Unesp
Preço: R$ 103,60 (594 págs.)